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Grandes multinacionais dedicadas a cometer uma ampla gama de crimes, de roubos e sequestros até o tráfico de pessoas, passando pelo comércio de drogas. Isso tudo com a indispensável participação e cumplicidade de porções do Estado mexicano. É assim que o professor Eduardo Buscaglia enxerga o estágio atual de organização dos cartéis de drogas no México.
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Considerado um dos maiores especialistas em crime organizado na América Latina, Buscaglia é um crítico da política de “Guerra às Drogas” conduzida pelo governo de Felipe Calderón, que chama de “jogo midiático”. “Quem pode negar o apelo midiático de enviar milhares de soldados às ruas? Parece uma excelente medida, mas a verdade é que o presidente Calderón não está mexendo nos interesses políticos e econômicos que são a essência da atividade criminosa.”
Nesta entrevista a Opera Mundi, ele diz que não há soluções mágicas para enfrentar a criminalidade, nem mesmo a legalização das drogas, porque o problema se tornou muito mais profundo. “Sem confiscar o aparato logístico, operacional e econômico – e não me refiro a lavagem de dinheiro, dinheiro no banco ou debaixo do colchão, mas a imensas frotas de transporte, prédios e galpões de armazenamento – que estão sendo usados diariamente pelos grupos criminosos em nome de empresários. Se isso não for afetado, nenhuma experiência internacional será eficaz”.
Buscaglia acredita que o fim da violência organizada no México só virá por meio de um pacto político, que parece distante, porque “políticos mexicanos não sentem a dor e o desespero de estar entre cruz e a espada”.
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Opera Mundi: Qual é o papel do governo mexicano diante da atual espiral de violência e violação dos direitos humanos?
Eduardo Buscaglia: Desde os anos 1970 até hoje, a violação dos direitos humanos foi concebida e promovida por agentes não-governamentais, que se apoderam de partes do Estado. O governo permanece sendo o problema, mas são os agentes não-governamentais os estrategistas dessas violações. Por exemplo: chegam os Zetas e dominam a polícia municipal de Durango, em seguida, o Cartel do Golfo controla a polícia estadual de Durango e o Cartel de Sinaloa controla os federais de Durango. Há três níveis do Estado mexicano nas mãos de três diferentes grupos criminosos. Os policiais municipais dos Zetas começam a assassinar os policiais estaduais que trabalham para o Golfo, que começam a assassinar os federais de Sinaloa. O governo faz parte da violência, porque são seus funcionários e policiais que sequestram as mulheres, homens, migrantes, pessoas sem recursos ou conexões políticas, que desaparecem e são vítimas do tráfico de pessoas.
E isso hoje é parte de um fenômeno que acontece em todo o continente. Existem franquias locais dos Zetas, que sequestram jovens bolivianos na região da fronteira entre a Bolívia e a Argentina e os enviam ao México para trabalhar no turismo sexual de Cancun ou de Acapulco. Por isso, muitos desaparecimentos hoje em dia estão ligados a fatores econômicos. Então, não é correto referir-se simplesmente ao “narco”. O menor problema é o narcotráfico, o problema mais grave é que milhares de pessoas estão sendo negociadas no atacado por esses grupos criminosos que tanto traficam drogas como praticam extorsão, sequestram, contrabandeiam bens e serviços e pirateiam mercadorias. São empresas multinacionais muito diversificadas e os desaparecimentos têm uma motivação econômica que abastece os crimes sexuais em várias partes do mundo e hoje o México é um centro de consumo que está entre os cinco primeiros do planeta.
OM: As elites tiram proveito dessa situação, em grande parte economicamente, ou ao menos contribuem para gerá-la. Então, qual poderia ser o ponto de inflexão?
EB: Vou dar um exemplo que vivenciei. Quando trabalhava na Colômbia como funcionário das Nações Unidas, estávamos em um dos poucos lugares seguros que naquele momento existiam em Bogotá, o “Club el Nogal”. Este lugar abrigava as elites empresariais, um bunker enorme, com piscinas, saunas de luxo e lá estavam eles, refugiados, isolados da realidade. O Club el Nogal foi destruído por um carro-bomba, desmoronou como as torres gêmeas de Nova York, com todos os empresários dentro. Para que algo comece a mudar, a violência coletiva terá de chegar às elites.
FM: O sr. diz então que é uma condição indispensável?
EB: Não é que eu queira, não quero que aconteça. Quero deixar claro para que depois não me acusem de incitar a violência. Mas lamentavelmente todos os casos internacionais examinados, o da Itália, da Colômbia e da Nigéria, ultimamente, demonstram que as elites começam realmente a aplicar medidas somente quando são ameaçadas. Então, dá-se prosseguimento à desapropriação das frotas de transporte, dos milhares de caminhões, dos centros de produção de efedrina, dos centros de distribuição de contrabando, pirataria de pessoas. Todas essas atividades são de propriedade real, não são dinheiro no banco. Têm um papel operacional diário para a criminalidade organizada, que lhes permite sobreviver, transportar, produzir. Esses recursos estão em nome de empresas legalizadas (de fachada), legitimadas pelo registro nas juntas comerciais.
Quando essas empresas são identificadas e desmanteladas, seus bens são confiscados, e geralmente se descobre o motivo pelo qual hoje são intocáveis: essas mesmas empresas financiam campanhas políticas para se proteger, esta é a razão pela qual não se interfere com estas empresas. As grandes organizações multinacionais, oligopólios e monopólios, que obtém lucros obscenos no México, também não querem que esta medida seja implementada, porque perderiam seus interlocutores, aqueles que permitiram a sua entrada no México sob condições de pouca concorrência. Há uma compatibilidade de interesses internacionais e domésticos muito nocivos, que tornaram possível que a situação chegasse a este nível de violência.
Sem confiscar o aparato logístico, operacional e econômico – e não me refiro a lavagem de dinheiro, dinheiro no banco ou debaixo do colchão, mas a imensas frotas de transporte, prédios e galpões de armazenamento – que estão sendo usados diariamente pelos grupos criminosos em nome de empresários. Se isso não for afetado, nenhuma experiência internacional será eficaz. Não é possível resolver o problema da criminalidade, da violência, do tráfico de armas, drogas e pessoas, com panacéias ou paliativos, legalizando todos os químicos que apareçam por aí. Não vai resolver com soluções mágicas, com fórmulas mágicas, tem de ser resolvido com medidas duras, que qualquer pessoa sem um doutorado em criminologia sabe que devem ser aplicadas para que esses grupos criminosos sejam reprimidos em sua dimensão operacional.
FM: Então a “guerra ao narco” de Calderón não é efetiva?
EB: É uma boa medida midiática, convence o público dos Estados Unidos, que vê um presidente que parece fazer muitas coisas, que parece ser agressivo contra grupos criminosos, que envia o exército. Quem pode negar o apelo midiático de enviar milhares de soldados às ruas? Parece uma excelente medida, mas a verdade é que o presidente Calderón não está mexendo nos interesses políticos e econômicos que são a essência da atividade criminosa. Nada além de levar adiante um jogo midiático.
Não estamos vendo estruturas desmanteladas, estamos vendo “mafiositos” detidos em grandes operações e que são substituídos com grande facilidade. Até mesmo o “El Chapo” Guzmán pode ser substituído com enorme facilidade a esta altura, pois ele nada mais é que um gerente operacional. E as elites sempre reagem da mesma forma: obviamente não querem chegar à essência de seu próprio sistema e de sua própria corrupção. Para poder abordar este problema e contê-lo, os governos têm de chegar à essência de sua própria corrupção, à essência de suas próprias fraquezas, de seus abusos de poder e isso é muito difícil de fazer.
Os grandes mafiosos no México não são conhecidos, são funcionários que ocuparam os mais altos cargos públicos. Os detidos são “gerentes operacionais”. É preciso chegar aos seus coordenadores políticos, aos seus coordenadores empresariais, aos que realmente estão exercendo o poder. E isso obviamente não se consegue enviando o exército às ruas. O exército em nenhum lugar do mundo foi projetado para isso.
FM: Como se pode explicar o aumento da violência no México durante o governo de Calderón? E quais são as medidas necessárias para acabar com ela?
EB: A violência em geral aumenta quando os grupos criminosos competem entre si para infiltrar-se no governo com o objetivo de consolidar seu domínio econômico. Em 22 tipos de mercado, onde o tráfico de drogas é somente um dos crimes, porque há tráfico de pessoas e de órgãos, contrabando, pirataria, extorsão, sequestro, fraude eletrônica, venda de armas. Quando os grupos criminosos, após concorrer pelo domínio se consolidam em uma aliança com outros grupos e se consolida o mercado do crime, por intervenção do Estado corrupto ou não, os homicídios organizados caem para zero.
Quando os processos de transição política não são concluídos como no caso mexicano, o que acontece é que o estado, com o conflito e a corrupção, vai se desintegrando, se “somalizando” e “afeganizando”, e isso gera instabilidade política, ilegitimidade dos presidentes em exercício, questionamentos à legitimidade e à própria existência do presidente. É quando começam a ocorrer assassinatos de políticos do mais alto nível e essa instabilidade política resulta em falta de controle, que é o que temos hoje.
Os políticos sabem, porém, que essa violência está chegando a eles, e tratam de negociar com as máfias, cuidam para que a máfia baixe os níveis de homicídios para que eles obtenham crédito político e sejam reeleitos e que a dor não chegue aos mais altos níveis das elites, para continuar este proceso sem mudar as regras do jogo. Mas, lamentavelmente, este processo envolve a deterioração da legitimidade do estado, passa-se a ver policiais que trabalham como guardas pretorianos privados, fiscais que ajudam empresários em investigações, o estado vai se decompondo.
A solução política para esta grande orgia de corrupção, para esta grande orgia de criminalidade organizada, deve ser abordada no âmbito internacional e nacional através de um pacto político mexicano, que ainda não se vê no horizonte porque os políticos mexicanos não sentem a dor e o desespero de estar entre cruz e a espada, e, até que isso não aconteça, não veremos o princípio do fim.
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