Bandeiras com as mesmas cores: azul, branco e vermelho. Um interesse tradicional dos intelectuais franceses pela ilha, de Victor Hugo a Jean-Paul Sartre. Uma presença contínua até mesmo na época do período especial cubano. Nos corredores do Quai d’Orsay — o “Itamaraty francês” —, não faltam argumentos para lembrar a amizade antiga entre França e Cuba.
Paris, entretanto, recusa a ideia de que esteja acelerando sua aproximação com Havana após o anuncio histórico dos presidentes Castro e Obama de retomar o diálogo, em 17 de dezembro passado. Mas, de todos os países europeus, a França foi a mais rápida a reagir. Em 11 de maio, o presidente François Hollande fará uma visita oficial histórica, a primeira de um presidente francês na ilha — que também nunca recebeu premiê francês. Para prepará-la, foi mandada no mês passado uma grande delegação, conduzida pelo secretário de Estado ao Comércio Exterior e ao Turismo, Matthias Fekl.
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Divulgação/governo francês
Ministro francês Matthias Fekl (à dir.) passeia pelo porto de Mariel, em vistia a Cuba
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Em uma entrevista concedida por telefone a Opera Mundi, ele insiste no fato de que a França quer ficar do lado de Cuba para ajudar a ilha a evitar uma nova queda na dependência vis-à-vis dos EUA. Ele também ressalta o papel estratégico que terá o porto de Mariel na abertura econômica da ilha.
Opera Mundi: O presidente François Hollande estará em Havana para uma visita oficial em 11 de maio. Qual é o objetivo desta viagem?
Matthias Fekl: Esta é a primeira visita de um presidente françês a Cuba desde a revolução, aliás, desde que Cuba existe como país. Mas não será apenas simbólica, todos os níveis de cooperação serão discutidos: a educação, a presença da cultura francesa, mas também a cooperação econômica e apoio financeiro da França para o desenvolvimento cubano. Vai ser muito concreto.
OM: A reaproximação histórica entre Cuba e os EUA, em dezembro passado, está obrigando a França a ficar mais presente na ilha?
MF: Há muito tempo que a França está presente ao lado de Cuba. Esteve presente, sobretudo, nos piores momentos, durante o período especial, liberando garantias financeiras específicas que ajudaram muito. Mas é claro que entramos agora numa nova época, com um bloqueio econômico que vai evoluir, mesmo que ainda não esteja claro para onde. Os cubanos querem construir uma nova relação com o seu grande vizinho, mas sem cair na dependência. Eles não querem que certa forma de capitalismo faça o que décadas de bloqueio não tinham conseguido fazer. Não querem voltar ao tempo de Fulgencio Batista. Para mim, o que ficou claro é a vontade dos cubanos de se abrir e modernizar a sua economia. Eles têm absoluta clareza sobre o fato de que o modelo econômico deles não funciona. Mas também há um forte desejo de preservar as conquistas da revolução, especialmente em saúde e educação. Deste ponto de vista, acho que a França pode ajudar Cuba a se modernizar sem perder os seus valores. Podemos cooperar na questão da gestão das empresas públicas, por exemplo, ou também sobre o sistema de saúde. Existe na França uma vontade de conciliar a iniciativa privada e o interesse público que pode interessar os cubanos.
OM: Quais são os setores econômicos em que empresas francesas têm boas chances no mercado cubano?
MF: Temos primeiro as áreas em que já estamos presentes, o turismo com o grupo Accor, a construção, com Bouygues e a multidão de pequenas empresas que traz come ele, e o transporte, com o grupo CMA-CGM. E, claro, não dá para esquecer o grande sucesso de Havana Club, o rum produzido conjuntamente pela empresa privada francesa Pernod Ricard e pela empresa pública cubana Cuba Ron. A firma tinha 7 funcionários quando começou, 20 anos atrás, agora são 550 empregados, e os planos de expansão não param. E há os setores em que esperamos um grande desenvolvimento, tais como: energia, agricultura, máquinas agrícolas. Não é normal que Cuba importe 80% da alimentação do país. Isto vai mudar nos próximos anos.
OM: Os empresários que acompanharam sua visita se queixaram de algumas dificuldades. Quais são as principais reformas que esperam?
MF: Os empresários enfatizam, por exemplo, a necessidade de simplificar as relações com funcionários cubanos, porque tudo passa pelo Estado cubano. Eles falam também da falta de acesso ao financiamento internacional, que complica muito para investir. Muitas coisas vão também depender do quanto o governo vai deixar para a iniciativa privada. Mais uma vez, cabe aos cubanos tomar as decisões para construir esse novo caminho, queremos acompanhá-los, sem impor nada.
OM: Durante sua viagem, a delegação visitou o porto de Mariel. Que foi sua percepção destas infraestruturas?
MF: É um lugar verdadeiramente impressionante, e acho que é uma realização estratégica. Não só porque é uma zona econômica especial, com isenções fiscais que atraem as empresas, mas porque o porto de Mariel pode se tornar muito importante na região com a expansão do Canal do Panamá. Além disso, os Estados Unidos não têm muitos portos em águas profundas na costa Leste, Mariel pode, portanto, tornar-se um hub na região. Nossas empresas estão entusiasmadas a respeito.
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OM: Com a provável retomada das relações econômicas com os EUA, o senhor vê Cuba como uma porta de entrada suplementar para o mercado norte-americano?
MF: É uma questão central para a produção de Pernod Ricard e Cuba Ron. Das 50 milhões de garrafas de rum que saem de suas fábricas, 80% são exportadas para todo o mundo, exceto os EUA, onde são proibidos. Tem que lembrar que os EUA representam hoje 40% do mercado mundial de rum, o que lhe dá uma ideia do potencial… Para o resto das empresas francesas, o desafio é na própria ilha, com a recuperação do atraso em termos de equipamento: o mercado automotivo, renovação de estradas de ferro, bens de consumo..
OM: É provável, porém, que a França e os europeus percam muitos mercados com a reaproximação com os Estados Unidos. Importar o trigo francês já não vai ser tão interessante…
MF: É claro que haverá um reequilíbrio, vamos perder alguns mercados, não só para os EUA, mas também para outros países que antes temiam sanções dos EUA. Mas as necessidades são tais que os resultados serão positivos, inclusive para a agricultura francesa.
OM: A sua delegação tinha também funcionários do Tesouro para falar da dívida cubana. Em que pé estão as negociações?
MF: Eu fiz questão de levar comigo Bruno Bézard, o diretor-geral do Tesouro francês, que é também o presidente do Clube de Paris, que reúne 19 credores públicos de Cuba. Após anos de ruptura, retomamos as discussões para conseguir ter uma ideia clara do dinheiro em jogo. A dívida de Cuba vis-à-vis do Clube equivale a cerca de US$ 16 bilhões. A França detém US$ 5 bilhões deste total. Estamos avaliando a quantidade exata e distribuição da dívida que o país tem para com cada credor.
OM: A França está planejando perdoar uma parte desta dívida?
MF: Nós não estamos lá ainda. Por enquanto, estamos nos pondo de acordo sobre os valores. A França tem um duplo papel nesta questão. Ela é o primeiro credor de Cuba, mas também preside o Clube de Paris. Queremos ajudar Cuba a retornar para a comunidade financeira internacional, o que é necessário, especialmente para atrair o investimento estrangeiro. Mas também temos de resolver a disputa com todos os outros credores do Clube.
OM: Por que a França está tão interessada em Cuba? Afinal, é um pequeno país de 11 milhões de habitantes, ainda que seja possível fazer negócios lá, eles serão limitados..
MF: Cuba é um país amigo, cheio de símbolos. Hoje, está virando uma espécie de laboratório. A questão é saber se um país pode preservar suas conquistas e valores de esquerda, e encontrar o seu lugar no mundo. Cuba merece o sucesso.