O Congresso Nacional brasileiro foi o teatro de uma semana tumultuada. Na noite da terça-feira (26/05), a proposta que pretendia incluir na Constituição doações de empresas a candidatos em campanhas eleitorais foi derrotada no plenário da Câmara. Mas foi por pouco tempo: no dia seguinte, o presidente da Casa, Eduardo Cunha, conseguiu virar o jogo, fazendo aprovar, por 330 votos contra 141, a emenda constitucional do financiamento privado.
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Com esta decisão, a reforma política avança na direção contrária dass aspirações da presidenta Dilma Rousseff, uma “perda de oportunidade bem previsível”, segundo o professor de ciências políticas da Sorbonne–Paris I e brasilianista Stéphane Monclaire, ao analisar as peculiaridades do sistema eleitoral brasileiro. Para o especialista francês, a manutenção do financiamento empresarial, aliada ao aumento da verba pública destinada ao fundo partidário, anuncia um forte aumento do custo das campanhas eleitorais, que trará impacto negativo em termos de corrupção e de qualidade do debate público — “é a promoção da plutocracia”, diagnostica Monclaire; o termo, de origem grega, sintetiza um sistema político em que os ricos governam para os ricos.
Cada vez mais reféns dos “marqueteiros todo-poderosos”, as campanhas milionárias criam , na opinião do brasilianista, “um problema de filosofia política” ao fazer prevalecer a lógica do marketing — “no lugar de tentar vender o que você faz, você deveria tentar fazer o que você pode vender”. “Este princípio é a negação da democracia representativa”, analisa o especialista em direito constitucional.
Luis Macedo/Câmara dos Deputados
Semana foi agitada em Brasília, com a votação de diversos tópicos da reforma do sistema político brasileiro
Leia, abaixo, a primeira parte da entrevista concedida por telefone a Opera Mundi:
Opera Mundi: A semana na Câmara dos deputados foi marcada por dois votos importantes sobre a regulamentação das campanhas eleitorais. O senhor diria que finalmente a reforma política vai sair do papel?
Stéphane Monclaire : Há anos que se fala da reforma política, pelo menos desde 1993, e o assunto volta à ordem do dia no início do mandato de cada presidente. Desde o 1° de janeiro de 1995, foram apresentadas na Câmara 154 propostas de emendas constitucionais afetando o funcionamento da política (financiamento, sistema eleitoral etc.). Este número revela a importância dos problemas. O fato de que nenhuma destas emendas tenha avançado também mostra a dificuldade de resolvê-los. Uma boa reforma deve satisfazer muitos objetivos: deve melhorar a governabilidade e aprofundar a democracia representativa para ser legítima. Também deve ser compreensível para a população, e finalmente, deve ser a menos cara possível. Não é simples. Além disso, a demanda para uma reforma fica mais aguda ainda à medida que emergem escândalos de desvio de dinheiro público. Porque tudo está conectado, a corrupção, a governabilidade e a legitimidade política dos eleitos.
OM: A corrupção está relacionada ao sistema eleitoral?
SM: Não, não diretamente. Para reduzir a corrupção, é necessário diminuir o poder discricionário daqueles que estão no topo do Estado em todos os níveis — federal, estadual, municipal. Deve também aumentar a transparência, acelerar as investigações e dar mais recursos à Justiça. Isso não acontece de um dia para outro e é claro que a luta contra a corrupção não é uma prioridade em todos os países. No entanto, é claro que o sistema eleitoral tem um impacto direto sobre a representatividade dos eleitos. Se quisermos que o conceito de ‘povo soberano’ não seja uma ficção, é necessário que o resultado das urnas não seja distorcido excessivamente em relação ao voto da população.
OM: Uma das principais pautas desta reforma diz respeito ao financiamento das campanhas. O senhor vê avanços neste tema?
SM: De fato, neste caso, a questão da corrupção é central. Os cidadãos têm a impressão — muitas vezes legítima — de que os candidatos são diretamente comprados por empresas. No Brasil, o financiamento é tanto público quanto privado. A parte pública é baseada em um fundo partidário, cujo montante acabou de ser triplicado pelo Congresso algumas semanas atrás. Assim, ele se tornou um dos maiores do mundo, seja em relação à população, seja em termos de número de eleitos. Mas há um problema central: o Estado transfere este fundo aos partidos e eles repassam o dinheiro para os candidatos de acordo com regras que não são as mesmas entre as diferentes legendas. A legislação sobre esta transferência não é precisa, e seria muito importante que fosse homogênea. Mas é um tema ignorado pelo Congresso.
OM: Qual é a consequência do aumento do fundo partidário?
SM: Pessoalmente, acho que é muito alto. E, para ser coerente, teria pelo menos que eliminar e proibir as doações eleitorais das empresas. Eu também sou a favor de autorizar o financiamento por pessoas físicas. Um cidadão deveria poder contribuir à campanha do partido de sua preferência, acho que é outra forma de participação na vida política. Mas esta doação deveria ter um teto razoável, de, por exemplo, um ou dois salários mínimos. A maioria das democracias europeias tem este sistema.
OM: O argumento dos parlamentares para manter as doações de empresas é de que isso seria a única maneira de evitar o financiamento paralelo, o famoso “caixa dois”. Qual é a sua avaliação?
SM: A única maneira verdadeira de evitar caixa dois é aumentar a transparência do financiamento dos partidos e das campanhas. Precisamos que os organismos de controle possam trabalhar de forma rápida, e que as sanções aos infratores sejam rápidas e severas. A realidade é que a questão do financiamento das campanhas eleitorais tem sido estudada apenas em função do apetite voraz dos parlamentares. Eles obtiveram mais dinheiro público, e o presidente da Câmara conseguiu aprovar um dispositivo constitucional confirmando as doações de empresas.
OM: Na prática, isso significa hoje que as campanhas vão custar ainda mais caras no Brasil?
SM: Exatamente: três vezes mais dinheiro público além das doações de empresas. Isso alimenta corrupção, e o pior é que este dinheiro tem outro efeito perverso sobre a democracia. Primeiro, isso promove a plutocracia. O dinheiro vai para o dinheiro, de modo que os políticos sem dinheiro próprio não vão nem poder considerar a possibilidade de saírem candidatos. Esse aumento também fortalece o poder dos marqueteiros, que já cobram fortunas. E isso cria um problema de filosofia política. O que faz o marketing? Ele fala para os empresários: “no lugar de tentar vender o que você faz, você deveria tentar fazer o que você pode vender”. Aplicada à política, este princípio é a negação da democracia representativa. Porque na base da democracia representativa, está o povo, teoricamente soberano. Com marqueteiros todo-poderosos, as pessoas não são mais ouvidas, os candidatos oferecem projetos lindos, suscetíveis de seduzir. A forma prevalece sobre o fundo partidário, e não há nenhum debate público sobre o assunto.
Gustavo Lima/Câmara dos Deputados
Parlamentares pressionam o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, em sessão plenária da votação da reforma política
OM: Quais são as possíveis opções em termos de sistema eleitoral?
SM: Para a Presidência da República, o único modelo possível é uninominal majoritário. Às vezes, a eleição tem dois turnos, como no Brasil, para dar ao vencedor uma maior legitimidade. Para o Congresso, existem muitas outras opções, que podem ser divididas em dois grupos principais: o sistema majoritário e o proporcional.
Em um sistema eleitoral majoritário, quem vence a eleição é aquele que ganha o maior número de votos. É um modelo que provoca muitas distorções, especialmente se for uma eleição com um turno único. Acabamos de ver o efeito perverso deste modelo no Reino Unido, quando os conservadores tiveram um numero desproporcionalmente elevado de eleitos em relação aos votos que realmente receberam.
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O sistema eleitoral proporcional busca que todos os partidos tenham representação. Essa representação se dá através do número de votos por eles recebidos: é estabelecida uma proporção entre o número de votos e o número de cargos. É o sistema hoje em vigor no Brasil. Mas temos dois problemas. Primeiro, é um sistema que funciona com coligações, ou seja, o cidadão vota no candidato de um partido, mas acaba elegendo alguém de outro partido. O outro problema é que, no Brasil, para deputados e vereadores, temos um sistema de lista aberta, muito raro no mundo. Concretamente, isto significa que o eleitor tem duas possibilidades: votar na legenda de um partido ou num candidato preferido. Isso incentiva os candidatos a ter um comportamento mais individual que coletivo, sobretudo depois e empossados.
OM: Quais são as consequências deste sistema proporcional de lista aberta empregado no Brasil?
SM: O principal problema é que ele não predispõe os deputados a um comportamento disciplinado dentro de seu próprio partido após as eleições. A questão da reforma política é como melhorar a governabilidade, isto é, a capacidade do Executivo para funcionar frente a um Congresso muito fragmentado, num sistema de presidencialismo de coalizão. Desde a época do presidente José Sarney (1985-1990), o Executivo deve constantemente costurar acordos. São usados “presentes” — ministérios, cargos comissionados ou emendas ao orçamento do Estado — para obter o apoio mais ou menos prolongado de vários grupos de deputados. A governabilidade seria muito maior se o Executivo pudesse negociar com partidos disciplinados: a decisão do chefe do partido seria seguida por os outros deputados, o que não é o caso hoje.
OM: O que você acha da proposta do chamado “distritão” que foi rejeitada nesta semana?
SM: Fico feliz que não tenha sido adotada. Realmente, não é um bom sistema porque fortalece os partidos dominantes. As votações para deputados migrariam do sistema proporcional para o majoritário. Assim, apenas os mais votados em cada Estado seriam eleitos. E como a maioria dos eleitores está geograficamente concentrada nos grandes centros urbanos, isso vai acabar com as candidaturas do interior. Seria melhor manter o sistema atual, removendo as coligações (o que será provavelmente o caso, porque parece que há um consenso sobre o tema no Congresso) e introduzir uma cláusula de barreira, de, por exemplo, 2%, para limitar a fragmentação.
* A segunda parte da entrevista com Stéphane Monclaire será publicada neste final de semana