No Brasil, qualquer mudança da Constituição depende exclusivamente do Congresso. No entanto, o professor em Ciências Políticas da Sorbonne – Paris I Stéphane Monclaire avalia que a presidente Dilma Rousseff fez um erro decidindo optar pela discrição frente ao protagonismo do Presidente da Camâra Eduardo Cunha. Ele também frisa que “os deputados estão brincando com fogo” com uma reforma política feita em nome das manifestações de 2013, com “muita má-fé”.
Leia: Reforma política 'promove plutocracia' e fortalece marqueteiros, diz professor da Sorbonne
Opera Mundi: Como o senhor avalia o papel do presidente da Câmara, Eduardo Cunha?
Stéphane Monclaire: Como presidente da Câmara, ele tem o controle do regimento interno. Ele tem um papel pessoal importante para definir a ordem em os projetos de lei que serão examinados. A ordem afeta o voto de cada texto. Tomemos um exemplo da vida cotidiana para entender melhor: no restaurante, você pode escolher a entrada e depois o prato. Mas se você começa decidindo comer um prato bem substancioso, provavelmente você vai optar por uma entrada mais leve. A ordem altera a próxima escolha. Isso é um poder considerável, que Cunha usa com bastante talento.
OM: De fato, Eduardo Cunha mudou a ordem do dia para acelerar a votação do projeto de distritão, mas ele acabou perdendo…
SM: As coisas são ainda mais complexas. Além da questão da ordem, existem muitas estratégias. Uma delas é organizar uma derrota ou aproveitá-la para obter outras coisas. E há de se lembrar que Cunha é muito hábil deste ponto de vista. Será que a verdadeira questão importante para ele era o distritão, ou este voto era uma maneira de aumentar o seu controle sobre o PMDB? Neste contexto de rivalidade com outros grandes nomes do partido, o presidente do Senado Renan Calheiros e o vice-presidente Michel Temer, ele deve ganhar o apoio do número mais alto possível de parlamentares, mas também de governadores e prefeitos. Claramente, esta reforma política virou também um terreno privilegiado para fazer crescer sua liderança política. As agendas da Câmara e do Senado ficaram reféns desta luta pela liderança do PMDB.
OM: O senhor pensa que Eduardo Cunha queria perder na votação do distritão?
SM: Não disse que ele necessariamente calculou que ia perder, ele ia gostar muito ganhar esta votação. Mas acho que a derrota dele é bem menos amarga do que muitos pensaram. Alias, no dia seguinte, ele virou o jogo, e a Casa aprovou a emenda sobre as doações empresariais a partidos políticos.
OM: Frente ao protagonismo de Eduardo Cunha, como explicar a discrição da presidente Dilma Rousseff neste debate?
SM: Há várias razões para isso. Primeiro, há no Brasil uma separação estrita de poderes. O Congresso é o único que pode mudar a Constituição. Além disso, quando Dilma Rousseff abandonou seu projeto de constituinte, que tinha prometido depois das manifestações de 2013, ela decidiu, de certa maneira, desafiar o Congresso a fazer esta reforma política. O problema é que o Congresso que saiu das urnas no final de 2014 tem uma agenda muito distante das aspirações da presidenta. Além disso, Dilma Rousseff se marginalizou sozinha no jogo político. Com uma popularidade muito baixa e num contexto de dificuldades econômicas, ela deve ter avaliado que fazer ouvir a opinião dela, poderia irritar ainda mais a oposição na Câmara e no Senado. E temos de lembrar que a articulação política não é mesmo o forte dela.
NULL
NULL
O problema é que quem fala em seu nome, o vice-presidente Michel Temer, não é um aliado leal. Como já disse, ele tem uma agenda própria e instrumentaliza o seu poder de articulador político para fazê-la avançar. Acho, porém, que o silêncio da presidente vai lhe custar caro.
OM: O senhor considera a adoção da emenda autorizando a doação de empresas aos partidos políticos como um fracasso da reforma política?
SM: Eu acho que o Brasil perdeu mais uma oportunidade. Esta não é a primeira vez, e era bem previsível. Não podemos raciocinar esquecendo o perfil sociológico dos deputados. É verdade que alguns querem realmente melhorar a governabilidade e a democracia, mas a maioria pensa primeiro em seus interesses pessoais. A verdadeira questão é: que forma deveria ter esta reforma eleitoral? Quem são as pessoas que precisam debater esta questão? Do ponto de vista do direito, são os parlamentares. Só eles têm o poder de alterar a lei e a constituição. Mas eles não deveriam escutar um pouco mais os representados, a população, os especialistas, que poderiam esclarecê-los sobre alguns pontos? Os cientistas políticos poderiam explicar, por exemplo, que o Japão abandonou o distritão alguns anos atrás, considerando que era uma grande fonte de corrupção. Não podemos querer que os parlamentares brasileiros sejam especialistas em direitos eleitorais no mundo e que eles saibam os efeitos perversos e positivos de cada sistema. Mas eles poderiam ouvir aqueles que sabem mais, e os que representam em geral.
Antônio Cruz/Agência Brasil
Cunha e Dilma, durante cerimônia do Dia do Exército, em abril: especialista diz que presidente erra em relação ao dirigente da Câmara
OM: Justamente, o senhor acha que o debate no Congresso leva em conta do desconforto que milhões de pessoas expressaram nas ruas, em 2013?
SM: As manifestações de 2013 têm acelerado o cronograma. Todo mundo quer fazer uma reforma política hoje em nome do clamor popular. Mas há muita má-fé nisso. E acho que os políticos deveriam tomar cuidado. É verdade que a população não entende os debates sobre sistemas de votação, o que é normal, porque são muito complexos e a imprensa não fez o trabalho pedagógico dela. Mas isso não significa que a população não tem expectativas. Ela espera que a reforma moralize a atividade política, e que o pessoal político se preocupe finalmente em dar um horizonte real para Brasil. No entanto, os sinais que ela recebe das autoridades políticas são péssimos, como a construção de um novo anexo do Congresso ou a triplicação do Fundo Partidário, sem qualquer contrapartida. Os deputados estão brincando com fogo, num contexto de crise econômica, de redução do poder aquisitivo e de aumento do desemprego. Isso pode levar a população a um sentimento de rejeição de todas as instituições políticas. A democracia brasileira não merece isso.