Agência Efe
Estima-se que 3.000 estrangeiros estejam em Calais, cidade francesa na rota rumo ao Reino Unido; ONU diz que 'condições são terríveis'
Há uma semana a ONU (Organização das Nações Unidas) pediu à França um plano global de “emergência civil” para acomodar dignamente os milhares de estrangeiros acampados em Calais, cidade no norte do país. Cerca de 3 mil imigrantes e refugiados, muitos deles fugidos de conflitos e perseguições em países como Síria, Líbia e Eritreia, estão acampados no subúrbio da cidade à espera de uma oportunidade para passar para o Reino Unido.
É para ajudar os imigrantes que quatro ONGs francesas de projeção internacional lançaram, há um mês, uma grande operação humanitária para dar aos refugiados aceso a água potável, alimentos, cuidados básicos de saúde e barracas para dormir. Médicos do Mundo, Socorro Católico, Socorro Islâmico e Solidaridade Internacional uniram forças para superar a situação de emergência. Em entrevista por telefone a Opera Mundi, a coordenadora de Médicos do Mundo na região Nord-pas-de-Calais, Isabelle Bruand, descreve uma situação caótica nas habitações, “em instalações que não respeitam nem as normas mínimas dos campos de refugiados no mundo”.
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Isabelle Bruand refuta o argumento das autoridades públicas segundo o qual um verdadeiro centro de acolhimento em Calais poderia se tornar um atrativo para mais migrantes, e salienta que este receio não isenta o governo da responsabilidade de encontrar uma solução adequada. Ela lembra que sendo a sexta potência econômica mundial, a França tem os recursos e a logística necessárias para lidar com os imigrantes de maneira digna, mas decidiu não fazê-lo por escolha política. “Uma parte da população poderia não gostar ver os migrantes bem acomodados”, explica.
Divulgação
Isabelle Bruand é a coordenadora da ONG Médicos do Mundo na região francesa de Calais
Leia abaixo os principais trechos da entrevista com a francesa Isabelle Bruand, da ONG Médicos do Mundo:
Opera Mundi: Médicos do Mundo (MDM) trabalham sobretudo em países em guerra ou que foram afetados por grandes catástrofes naturais. Por que lançar uma operação humanitária em Calais?
Isabelle Bruand: Na verdade, MDM também está presente na França, onde ajudamos as populações precárias, no dia a dia. Mas esta é a primeira vez que montamos uma operação humanitária de emergência num campo de refugiado de um modo idêntico ao que nós fazemos no exterior em caso de crise grave, como enchentes, ou conflito militar. Atualmente, há em Calais entre 2 500 e 3 000 pessoas, incluindo mulheres e crianças, que moram numa favela tolerada pelas autoridades perto da balsa que vai para o Reino Unido. Eles moram em barracas, na lama, em instalações que não respeitam nem as normas mínimas dos campos de refugiados no mundo. Lá, nós respondemos às necessidades vitais que não são cobertas pelo Estado: os imigrantes estão com fome, têm pouco acesso à água potável, precisam tomar banhos, e precisam de um atendimento de saúde. O hospital na área está completamente saturado.
OM: Qual é a ação da ONG?
IB: No inicio, a gente distribuía cobertores, mas com as necessidades crescentes, paramos porque não dava mais. Continuamos oferecendo kits de higiene, com sabão, creme de barbear, coisas assim. Montamos uma clínica móvel, em que temos enfermeiros, e de vez em quando médicos voluntários. Recebemos em média, entre 60 e 100 pessoas por dia. Isto significa que as necessidades são consideráveis.
OM: Quais são as principais patologias que vocês encontram?
IB: O setor mais importante é a traumatologia. Nós tratamos muitas feridas relacionadas às tentativas de cruzamento do canal até o Reino Unido. Lesões nas mãos, porque eles se agarram às grades que eles tentam escalar. Mas também fraturas nas pernas e entorses, porque , quando caem, tentam embarcar em caminhões de qualquer jeito. Há doenças de pele, e até sarna, ligadas às condições de vida na favela. Problemas oculares devidos à poeira, mas também provocados pelas bombas de gás lacrimogêneo da polícia. Nós também atendemos pacientes com grandes problemas psicológicos, com historias muito sofridas. Não temos os recursos para fazer verdadeiras terapias, mas temos um psicólogo que faz entrevistas individuais, que recolhe as suas histórias. Eles precisam ser escutados. Isso já é alguma coisa.
OM: O que vai acontecer nessa região tão fria, com a chegada do inverno?
IB: Isso nos preocupa muito. É urgente melhorar as condições de acolhimento deles. Na França, existe um plano chamado de “frio extremo”, durante o qual todos os sem-tetos são recolhidos e instalados em abrigos. Mas este plano é aplicado apenas quando a temperatura cai abaixo de zero grau durante vários dias seguidos. O que vai acontecer com eles quando a temperatura será um ou dois graus acima de zero?
OM: Qual é a ação do Estado frente à emergência?
IB: É totalmente insuficiente. Em fevereiro, o Estado abriu a plataforma de serviços chamada Jules Ferry, calibrada para 1.200-1.500 pessoas. Ela oferece uma refeição por dia, alguns chuveiros, um posto de saúde com uma enfermeira que vem duas horas a cada dia e tomadas elétricas para carregar os telefones. Há também 100 lugares de acolhimento durante a noite para mulheres e crianças, mas isso não é suficiente.
Agência Efe
Coordenadora da ONG Médicos do Mundo critica falta de ação do governo francês para lidar com os 3.000 imigrantes em Calais
OM: Como explicar essa falha? O Estado não sabe lidar com a situação ou não quer fazê-lo?
IB: Um pouco de ambos. Quando há um desastre no outro lado do mundo, a França, com sua logística, sabe muito bem instalar um hospital de campanha, em menos de dois dias, com a ajuda do Exército e de associações internacionais. Mas em Calais, os atores locais, como a prefeitura, não são preparados para lidar com esta situação excepcional. Mas é também o resultado de uma falta de vontade política. Claramente o Estado não quer assumir as sua responsabilidade de acomodar dignamente os imigrantes.
OM: Tanto o governo britânico quanto o francês têm se oposto à construção de um verdadeiro centro de acolhimento em Calais por temer que se torne um atrativo para mais estrangeiros. Este argumento tem força?
IB: Isso é, infelizmente, o discurso predominante. A ideia de que se você tratar os imigrantes com dignidade, vai atrair milhares de outros, é absurda. Estamos falando de pessoas de Eritreia, Etiópia, Sudão, Iraque, Afeganistão e Síria, que deixaram seus países porque estavam colocando a vida em risco. Eles não chegaram a Calais, só porque aqui têm acesso à água, instalações sanitárias ou um teto. Além disso, eles nunca imaginaram que eles seriam tratados tão mal na França, que representava outra coisa para eles.
OM: Aliás, as críticas da ONU e da imprensa mundial sobre as condições deploráveis no campo não incomodam as autoridades francesas?
IB: Pega mal, obviamente. A sexta maior economia do mundo incapaz de acomodar dignamente 3.000 pessoas que arriscaram suas vidas para chegar até aqui dá uma imagem internacional péssima. Repito, 3.000 pessoas, não é nada… Mas os cálculos políticos são diferentes. O governo também pensa no impacto interno, e deve avaliar que uma parte da população não gostaria de ver estes refugiados bem acomodados.
OM: Qual é a reação da população local em Calais?
IB: Há de tudo. Existe uma grande solidariedade de parte de muitas famílias. Inclusive, muitas associações locais estão fazendo há anos um trabalho incrível, mas agora, elas estão exaustas e ultrapassadas, o que levou as ONGs internacionais, como nós, a intervir. Infelizmente, existem também reações racistas e violentas, houve ataques contra os imigrantes. E o fato de juntar tantas pessoas numa favela só, o que parece ser o desejo do governo, não ajuda para a aceitação deles.
OM: França e Reino Unido fizeram um acordo para reforçar a segurança na fronteira, para impedir a passagem de imigrantes. Qual foi o impacto destas medidas?
IB: O que vemos é que isso leva as pessoas a aceitar ainda mais riscos. As lesões e as feridas com as quais lidamos são cada vez mais graves. Há também mais mortes, as pessoas morrem cruzando a estrada, saltando pontes ou por afogamento. Pelo menos 12 pessoas morreram assim nos últimos dois meses.
OM: Quanto tempo MDM planeja ficar em Calais?
IB: Um mês ou dois, não mais. Primeiro não temos o orçamento para ficar mais. E, além disso, esse não é o nosso papel. Não temos a intenção de substituir o Estado em Calais. Nós interviemos porque havia grandes necessidades de cuidados, mas era também uma maneira de desafiar o Estado e mostrar publicamente a necessidade urgente de construir um centro de saúde no local. Temos agora a prova de que há trabalho para dois médicos em tempo inteiro, pelo menos. As autoridades devem também desafogar o campo, e criar centro de acolhimento em tamanho humano. Por fim, é urgente agilizar o processo de asilo
OM: E se o Estado não criar um centro de saúde no campo, vocês irão embora de qualquer maneira?
IB: Sim. E, para os refugiados, seria um desastre.
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