No primeiro encontro de países norte-americanos do presidente Obama, em agosto, líderes das três nações evitaram mencionar na declaração conjunta o Nafta (Tratado de Livre Comércio Norte-Americano) ou sua ramificação, a Parceira para Segurança e Prosperidade. Apesar de o pacto ter originado os encontros anuais, seus resultados negativos o tornaram mais um constrangimento do que um trunfo político.
Líderes norte-americanos podem desejar se afastar do óbvio fracasso do Nafta, que falhou ao tentar melhorar a vida de seus cidadãos, mas canadenses, mexicanos e aqueles que vivem nos Estados Unidos continuam a pressionar por uma revisão detalhada e uma renegociação. Este artigo explica porque essa tarefa é mais urgente que nunca em meio à crise global atual.
As primárias do partido democrata de 2006 marcaram um período histórico: foi quando o Nafta se tornou oficialmente um palavrão. Os candidatos Hillary Clinton e Barack Obama disputaram com base em críticas ao acordo comercial e ganharam os votos de trabalhadores frustrados (e frequentemente desempregados) nas áreas de trabalho braçal do país.
Os candidatos não estavam só explorando desejos de estados indecisos. Pesquisas mostraram pela primeira vez que as escalas da balança haviam mudado: a maioria dos votos nacionais expressou opiniões negativas sobre o Tratado de Livre Comércio Norte-Americano de 1994 entre Estados Unidos, Canadá e México. As avaliações do Nafta em seu aniversário de 10 e 15 anos aumentaram o ceticismo, ao apresentar um crescimento nulo no México e perdas de empregos nos Estados Unidos.
Foi uma virada e tanto. As iniciais do Nafta entraram no léxico norte-americano como um símbolo de progresso medido por uma rápida integração econômica. Globalização que nós produzimos e consumimos e cujo destino parecia benéfico e, de qualquer forma, inevitável.
Em nenhum lugar o experimento de integração regional foi tão extremo e rápido quanto na América do Norte sob o Nafta. Ele demoliu barreiras de investimento e comércio, com tarifas protetoras e preferências locais, desmontou programas governamentais de apoio (exceto quando o líder do processo, os Estados Unidos, achavam inconveniente – como no caso da agricultura) e estendeu monopólios de propriedade intelectual além do que era sugerido pela OMC (Organização Mundial do Comércio).
O que o Nafta não fez, a União Européia havia feito. O Nafta ignorou o potencial dos impactos imigratórios e se recusou a criar fundos de compensação ou estratégias de transição que considerassem a enorme assimetria entre as economias nacionais envolvidas. A economia do México era 1/15 menor do que a dos Estados Unidos e milhões de famílias mexicanas viviam na pobreza extrema. O Nafta não proveu meios de lidar com essas concorrências desiguais. Em vez disso, contou com o mercado internacional irrestrito para resolver todos os problemas.
Medido somente pelo grau de integração econômica, o experimento do Nafta foi bem sucedido. A fronteira entre Estados Unidos e México se tornou a região mais integrada do mundo. Trinta e cinco milhões de dólares em bens cruzam a fronteira por hora. O comércio total entre os três países mais que dobrou, enquanto o total de mercadorias trocadas entre os Estados Unidos e o México quase triplicou, indo de 81,6 bilhões de dólares em 1993 para 266,6 bilhões em 2004.
No entanto, números crescentes de comércio não são o mesmo que melhorar a qualidade de vida do cidadão médio. O desemprego relacionado ao Nafta nos Estados Unidos está superando a geração de empregos diretos. Canadenses protestam a perda de soberania e a habilidade de fazer um planejamento sustentável dos usos dos recursos naturais devido a exportações obrigatórias para os Estados Unidos sob o Nafta.
O México – definitivamente o parceiro júnior no negócio – tem experimentado uma deslocação populacional maciça. Pequenos agricultores perderam os meios de sobrevivência para a concorrência de importadores de milho e de outras culturas básicas. Pequenas e médias empresas que produziam para o mercado interno saíram do negócio. Milhares de trabalhadores foram empurrados para fora do mercado de trabalho formal e entraram no informal, especialmente as mulheres, onde não há benefícios, segurança ou salário mínimo. Como resultado, a imigração para os Estados Unidos saltou para meio milhão de homens, mulheres e crianças por ano.
Quem ganhou?
Mas nem todo mundo saiu perdendo com o Nafta. O acordo foi elaborado com a participação direta das corporações transnacionais. A liberalização do comércio e do investimento permitiu traçar estratégias regionais para aproveitar ao máximo áreas onde os recursos naturais, mão de obra barata, subsídios do governo e regulação de baixos custos operacionais, tornam a produção mais menos custosa. Levando em conta unicamente os interesses das corporações transnacionais, esta foi a eficiência que, todavia, tem escondido alguns custos a longo prazo: provoca fluxos de mudanças populacionais em grande escala, interrompendo vidas, os meios de subsistência e culturas. Ele usa os recursos naturais e polui o planeta sem pagar seus custos reais.
Para dar um exemplo simples: as cláusulas de investimento do Nafta criaram um elevado grau de concentração da produção agrícola e comercialização, liderada pelas gigantes multinacionais dos Estados Unidos, Cargill e ADM, em associação com empresas mexicanas. Durante o período do Nafta, o lucro líquido da empresa de agronegócios Cargill subiu 660% – saltou de 597 milhões de dólares em 1998-1999 para 3,95 bilhões no ano fiscal de 2007-2008. Enquanto isso, milhões de pequenos agricultores mexicanos foram deslocados, já que se tornou impossível competir com as importações subsidiadas. A Cargill recebeu subsídios maciços do governo mexicano, como programas sociais e produtivos, enquanto para os pequenos agricultores, foram reduzidos ou eliminados. A manipulação de preços levou à crise da tortilla – uma alta nos preços da tortilla em janeiro de 2006. A fixação de preços, que afeta os consumidores de baixa renda e a ameaça de contaminação genética devido à importação de milho transgênico, abriu uma enorme discussão sobre o Nafta no setor agrícola do México e deu origem a um movimento amplo em defesa do milho e pró renegociação.
Sob o Nafta, a desigualdade crescente e concentrada no México deu ao país a possibilidade dúbia de indicar os homens mais ricos do mundo como os principais culpados pelos poucos ganhos.
Chegada da Crise: Repensando o Nafta
Mesmo antes da recente crise econômica, as organizações em todos os três países do Nafta pediram uma renegociação ou rescisão do acordo.
A crise múltipla – alimentar, econômica, financeira, ambiental – que surgiu no final de 2008, intensificou a necessidade de uma reunião. Estamos em um momento decisivo na história. Podemos aprofundar o modelo do Nafta, voltado à exportação, terceirização e mobilidade de capitais, ou podemos repensar este modelo “de cima para baixo” de integração e começar a construir um sistema mais equitativo, regulado e “de baixo para cima”de recuperação econômica, que pode ser sustentado ao longo de gerações.
Há duas razões para acreditar que isto é possível e uma para ser pessimista. No lado positivo, as corporações que participam do Nafta caíram em descrédito. O argumento de que a desregulamentação e a rédea livre para multinacionais trarão prosperidade para todos é pouco plausível agora.
No entanto, essas empresas continuam a exercer uma influência desproporcional nos assuntos globais. O Grupo dos 20 se reúne regularmente para debater a regulação irresponsável do setor empresarial e surge com pedidos para darem o dinheiro do governo para eles, preservando o sistema de comércio de “protecionismo”.
Mas muitas pessoas sentem que o preço da manutenção do Nafta e similares acordos de livre comércio tem ido muito longe. Para enfrentar a crise, os países do Nafta têm necessidade de utilizar instrumentos de política de emergência para se recuperar. Estes incluem compras governamentais para apoiar as empresas locais, subsídios e resgates, programas de apoio e a geração de emprego patrocinada pelo Estado. A maioria destas ferramentas são tecnicamente proibidas pelo Nafta.
A administração de Obama reagiu à crise nos Estados Unidos com medidas enérgicas para estimular a economia nacional. Isso vai custar quantidades quase inconcebíveis de dinheiro. Muitas das mudanças estruturais necessárias ainda não foram tratadas, entre elas o Nafta.
O México não pode se dar ao luxo de medidas como esta. No entanto, a crise terá um custo humano ainda maior uma vez que tantas famílias já vivem no limite. O México depende do mercado norte-americano para comprar cerca de 80% de suas exportações. É de longe a principal fonte de investimento estrangeiro. E as remessas dos Estados Unidos são a segunda fonte mais importantes de receitas no estrangeiro, perdendo apenas para o petróleo.
Projeções para o crescimento do México em 2009 caem quase semanalmente (agora calculado em -7%). O salário real perdeu quatro pontos percentuais para a inflação entre 2006 e 2008, acelerando uma tendência que tem sido constante global no período do Nafta. O salário mínimo oficial fica abaixo do nível de fome.
O presidente Obama argumentou vagamente que a prosperidade nacional deve ser construída sobre a prosperidade regional. No entanto, a ajuda dos Estados Unidos para o México durante a crise econômica vai quase que exclusivamente para a segurança. A “Iniciativa Mérida” já destinou 1,1 bilhão de dólares para pagar ao vizinho do norte equipamentos de defesa, sistemas de tecnologia da informação e treinamento militar e policial para lutar uma guerra contra as drogas. A ajuda de desenvolvimento do USAID fica em torno de 23 milhões dólares anualmente, sendo que um grande pedaço disso vai para a segurança e as reformas políticas. Isso deixa as migalhas para as pessoas que realmente precisam de ajuda no país. Elas são forçados a migrar e centenas de milhões de dólares são gastos para caçá-las, detê-las, prendê-las e deportá-las.
Deve existir uma estratégia melhor.
O Nafta pode ser renegociado?
Mais de mil pessoas protestaram do lado de fora da Cúpula América do Norte. Elas foram mantidas à distância. A polícia isolou vários quarteirões em torno da reunião para evitar qualquer contato incômodo entre os líderes e seus súditos. Mais uma vez relegado a um segundo plano, aqueles que representam o meio ambiente, comércio justo e organizações trabalhistas apelaram para a renegociação do Nafta.
Por lei, não há dúvida de que o Nafta pode ser renegociado. Os movimentos sociais e os sindicatos que exigem a renegociação do Nafta não estão pedindo o fim do comércio internacional. Eles pedem que os incentivos do governo para mudar a produção no exterior sejam eliminados e que aos setores econômicos que não podem competir no mercado internacional, mas são fundamentais na geração de empregos decentes, tenha também uma chance de sobreviver. Agora, com a crise, os cidadãos em todos os países têm aumentado a demanda aos governos para que adotem um desenvolvimento mais local e programas sociais proibidos no âmbito das condições de competição e de privatização do Nafta.
Cada país do Nafta têm seus interesses particulares. Nos Estados Unidos, o presidente Obama como candidato ecoou demandas do cidadão quando disse: “Devemos acrescentar obrigações vinculativas para o acordo do Nafta para proteger o direito à negociação coletiva e outras normas fundamentais de trabalho reconhecidos pela OIT (Organização Internacional do Trabalho). Da mesma forma, temos de acrescentar normas ambientais para que as empresas de um país não tenham vantagem econômica por meio da destruição do meio-ambiente. E devemos alterar o Nafta para deixar claro que leis justas e regulamentos escritos para proteger os cidadãos em qualquer um dos três países não podem ser simplesmente substituídos a pedido de investidores estrangeiros.”
Agora o problema parece estar dependendo de detalhes e do calendário. Obama disse que antes da cúpula a renegociação não estaria sobre a mesa, afirmando que ele “tem muita coisa em seu prato agora” como a saúde, energia e reformas financeiras, e também a necessidade de estabilizar a economia antes de abrir um longo debate sobre renegociação do Nafta.
Mas a crise econômica e a reabertura do debate pela presidência do Obama deram a oportunidade de fazer algumas mudanças necessárias para um acordo obsoleto. A presidência de Obama poderia acabar apenas adotando a plataforma democrata sobre o comércio, que prevê tornar o ambiente de trabalho e acordos de parte do texto principal e acrescentando as normas trabalhistas fundamentais da OIT, bem como criar um programa expandido nos Estados Unidos de deslocamento de empregos.
Não é de todo claro que este formato tem mais dentes do que as atuais regras do Nafta. Elas nunca permitiram que um único caso passasse para as sanções, não importando as violações flagrantes. Organizações formadas por cidadãos serão um fator crítico para forçar a administração a viver de acordo com suas promessas de reformar o pacto de comércio.
Do lado canadense, organizações da sociedade civil exigem a eliminação da cláusula de proporcionalidade, que exige que o Canadá envie petróleo aos Estados Unidos, mesmo em tempos de escassez. Eles também pedem a seu governo para eliminar o Ch. 11 investidor-Estado, cláusulas que dão aos investidores o direito de processar governos. Este capítulo é controverso em todos os três países, porque as empresas estão usando leis de segurança que interferem com os seus “presentes ou futuros ganhos para substituir a saúde. A estrutura peculiar jurídica – fora todos os sistemas judiciais nacionais – não só permite que empresas privadas processem os governos por uma ampla gama de supostas queixas, mas são também claramente oblíquos. Uma revisão recente mostrou que os tribunais de comércio especializados decidiram em favor das corporações na esmagadora maioria dos casos.
No México, um amplo movimento popular chamou para a renegociação o capítulo agrícola do Nafta , de olho em proteger a produção de alimentos básicos e remover completamente o acordo de milho e feijão. Eles exigem o direito de regulamentar o sistema alimentar para tanto consumidores quanto produtores terem acesso ao trabalho digno e ao sustento.
Finalmente, os grupos de cidadãos exigem um fim para a Parceria de Segurança e Prosperidade (SPP) – também conhecido como “acordo Plus do Nafta”. Existem indícios de que o SPP pode, de fato, estar no final de sua vida política. O pacto mal concebido entre os líderes dos governos dos três países foi projetado pela administração Bush como um plano de cooperação regional contra o terrorismo e uma forma de aprofundar a integração do Nafta sem supervisão parlamentar ou pública. Ela permite que os Estados Unidos e a polícia de fronteira com o México aumentem a vigilância e aprofunde a integração econômica. Nenhum membro da sociedade civil foi convidado a participar com regularidade nos vários grupos de trabalho, que são compostos por representantes das corporações transnacionais e dos governos. Uma vez que tanto a direita quanto a esquerda nos Estados Unidos o repudia, dizem que o SPP será revogado ou reestruturado em breve.
O primeiro passo para renegociar o Nafta deve ser um estudo detalhado de impacto em todos os três países. Nos Estados Unidos, o senador Sherrod Brown (D-OH) e o deputado Mike Michaud (D-ME) apresentaram ao Congresso a lei Reforma do Comércio, Responsabilidade, Desenvolvimento e Emprego (TRADE). A lei exige uma revisão do Nafta e estabelece os princípios do comércio justo para avançar. Este ato obriga o governo a incluir não apenas os dados do comércio no estudo, mas também do emprego e da perda de emprego, além de normas trabalhistas, condições de segurança do consumidor e impactos ambientais. A lei foi re-introduzida no Congresso em 24 de junho e conta atualmente com 116 patrocinadores.
Repensar o Nafta deve incluir os dados sobre o impacto e as conseqüências da grande experiência que até agora não foram relatados e analisados. A revisão deve ser independente e permitir a consulta pública. É preciso ter critérios cuidadosamente definidos de avaliação, incluindo indicadores sociais, econômicos, políticos e culturais e um mecanismo para receber a análise da sociedade civil e apresentar isso como parte do processo.
Romper a negação dos líderes e as táticas de demora para mover na direção de uma profunda avaliação e reformulação do Nafta, exigirá movimentos populares amplos. No México, os movimentos de agricultores realizaram grandes manifestações, algumas com mais de 100 mil pessoas nas ruas, pedindo a remoção do milho e do feijão do acordo, para serem capazes de gerir o abastecimento de alimentos mais básicos do México. Depois da primeira marcha, em janeiro de 2003, o então presidente Vicente Fox pediu a renegociação e o governo dos Estados Unidos disse que não. Fox desistiu imediatamente do pedido. O atual presidente, Felipe Calderón, um neoliberal ferrenho, opõe-se a renegociação.
Nos Estados Unidos, o presidente Obama não cansa de repetir a fala que “o Nafta ajudou Wall Street e machucou a Main Street”. Nela está um entendimento de que o acordo é falho devido à sua orientação pró-empresarial e não apenas porque contém algumas cláusulas ruins ou conseqüências imprevistas, mas que colocou a questão da renegociação em banho-maria. Movimentos de cidadãos continuam a empurrar para renegociação ao competir com uma série de questões importantes para a visibilidade.
Os canadenses, os cidadãos dos Estados Unidos e os mexicanos precisam de debates públicos para determinar suas próprias prioridades e estratégias nacionais de reformas políticas, aliviar o sofrimento e a pobreza e construir estruturas alternativas. Será a convergência dessas estratégias de cidadãos de todas as três nações que nos permitirá unir e reverter o atual modelo do Nafta.
Laura Carlsen é diretora do Programa das Américas para o Centro de Política Internacional na Cidade do México.
Este artigo foi publicado originalmente na revista The Christian Century.
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