A diplomacia do G7, nos últimos anos, disseminou a interpretação de que a China pertence ao clube das potências econômicas tanto quanto França, Estados Unidos, Alemanha ou Japão. Mito ou fato? A dúvida vem se desfazendo rapidamente desde que a crise veio à tona nos EUA. Ficou mais claro desde então o interesse tanto da China quanto da Rússia em se afastar das grandes empresas do G7 e dos seus termos de negócios. Os dois gigantes do Oriente, aparentemente, conseguiram sobrepujar as desavenças e acertaram uma agenda diplomática cujos termos são o oposto da agenda do G7.
Esse acerto tem algumas palavras mágicas: respeito à soberania e à integridade territorial, primazia da lei internacional nas relações entre os países. O oposto disso é, por exemplo, a invasão do Iraque, a guerra no Afeganistão, as sanções contra o Irã e o desmembramento político de países como a ex-Iugoslávia.
China e Rússia estão neste momento realizando uma reunião de cúpula do principal instrumento diplomático criado para viabilizar sua agenda independente do G7 – a Organização de Cooperação de Shangai, ou SCO, na sigla em inglês. A SCO é fechada ao G7 desde sua criação.
Além de mais de 40 acordos econômicos, que envolvem investimentos estimados em 3,5 bilhões de dólares, a pauta da reunião inclui temas decisivos da conjuntura atual: medidas para combater a crise financeira, aviso mútuo sobre o lançamento de mísseis balísticos, supervisão do programa nuclear do Irã e desnuclearização da Península da Coreia.
Ao contrário do G7, os dois países aceitam o programa iraniano e podem tentar estender a mesma solução à Coréia do Norte: admite-se o desenvolvimento da tecnologia, desde que pacífica, de acordo com as normas internacionais. Nada de sanções econômicas decididas pelo G7. No caso, cabe à Agência Internacional de Energia Atômica fazer a fiscalização. Não é certo que se chegue a acordo agora sobre a Coréia do Norte: é uma possibilidade que podem surgir da reunião, segundo fontes do governo russo.
Entre os negócios fechados esta semana, um deles coroa quase dez anos de tentativas: o acordo de fornecimento de gás natural russo à China. A expectativa é que leve à construção de dois gasodutos atravessando a Sibéria. A demora se deveu à guerra de preços estabelecida no mercado de energia. Não se divulgou o preço acertado para o gás, mas no caso do petróleo, que a Rússia também fornecerá à China em grandes volumes, os dois lados conseguiram reduzir drasticamente a inflação, acertando um valor (20 dólares o barril) que equivalia a metade do preço de mercado na época, em 2008.
É bem provável que essas condições sejam estendidas a todos os países da SCO, que reúne Casaquistão, Quirguistão, Uzbequistão e Tajiquistão. São observadores o Irã, a Índia, o Paquistão e a Mongólia.
Na contramão do Brasil
Desde o início da crise, a China mudou da água para o vinho sua estratégia econômica: passou a investir pesado em toda a Ásia, principalmente em grandes obras de infra-estrutura e em fábricas, cujo objetivo é estimular o crescimento econômico dos vizinhos, muitos dos quais são, em princípio, aliados do G7, como a Índia e o Paquistão, dentro da SCO. Em consequência, a economia chinesa também pode crescer. É o oposto do que faz o Brasil, por exemplo, que está estimulando o binômio devastador defendido pelo G7: alto consumo e baixo crescimento.
Não é por outro motivo que virou moda nos últimos tempos discutir “um mundo multipolar”. Mas isso não significa deixar tudo como está, como a diplomacia ocidental imagina e a mídia copia. Ao contrário: para a China e a Rússia, entre muitos outros, significa fugir das decisões unilaterais do G7 que atropelam a soberania dos países mais fracos e, não raro, também o território deles e as normas diplomáticas.
Essa preocupação está crescendo nos próprios países do G7, internamente. Tanto que um dos motes da eleição que reelegeu a chanceler Angela Merkel, na Alemanha, foi a retirada de armas e soldados do Afeganistão. No Japão, foi pior: depois de 50 anos no poder, o governo do Partido Liberal Democrata foi derrotado sob a palavra de ordem de independência diplomática dos EUA.
Ichiro Ozaro, principal articulador do Partido Democrático do Japão, vitorioso, declarou em campanha que pretende manter a aliança com os EUA, mas disse que, se precisar de ajuda, pede.
“O governo Bush começou as guerras no Iraque e no Afeganistão sem consenso da comunidade internacional”, disse ele à revista Time, em março. “Em casos em que os EUA exercerem seu poder sozinhos, o Japão não deverá participar. No caso do Afeganistão, o país era auto-suficiente em alimentos. Hoje, a auto-suficiência caiu para 40%. O mais importante é dar uma vida estável para os afegãos. Isso significa substituir as armas por arados”.
O jornalista Flávio Dieguez, editor de Internacional da revista Retrato do Brasil, escreveu este artigo para o Opera Mundi.