Uma fileira de milicianos congoleses se esgueira pela densa vegetação.
Quase todos são apenas pele e osso. “Precisamos mostrar os corpos”,
dizem eles ao câmera que os acompanha de perto. Eles mostram o caminho
até um grande complexo com algumas cabanas espalhadas. Corpos inchados,
infestados de moscas, jazem aqui e ali. Os fotógrafos ocidentais
acertam o foco, clicando com voracidade. Então se ajoelham e
reposicionam as lentes para obter uma imagem melhor.
Mais tarde, o cineasta Renzo Martens pergunta a um dos fotógrafos: “Quem é o dono das fotos?”
Um pouco intrigado, o fotógrafo responde: “Eu”.
“Mas eles organizaram a situação”, retruca Martens.
“Sim, mas sou eu quem opta por montar um quadro da situação, então são minhas”, insiste o fotógrafo.
Esta é uma das muitas cenas provocadoras do filme em estilo de
documentário Enjoy Poverty (Aproveitem a pobreza), de Martens, em
exibição na Europa. Martens é um artista holandês que usa seu filme
para protestar contra a exclusão do povo congolês dos lucros com um
recurso que lhes pertence. O recurso é a pobreza.
Veja trailer do filme:
O diretor argumenta que tanto as agências de ajuda humanitária quanto os
jornalistas produzem as imagens que vemos da África em benefício
próprio, e não para motivar verdadeiras mudanças nas comunidades
locais. “Não há interesse em modificar as questões estruturais”, diz o
cineasta. “Elas (as ONGs) querem que vejamos uma criança sofrendo, mas
não nos mostram que o pai está ganhando quatro dólares por semana. Isso
está além de seu mandato”.
Martens contrasta a pobreza na República Democrática do Congo (RDC) com
o poder de lucro da mídia presente para registrá-la. Vemos, por
exemplo, o lavrador que ganha 50 centavos de dólar por três dias de
trabalho duro. Ele tem uma filha gravemente subnutrida e a família
sobrevive comendo folhas de mandioca. Um fotojornalista ocidental, por
outro lado, pode ganhar US$ 300 por uma foto que mostre isso.
No filme, Martens convence alguns fotógrafos de casamento congoleses de
que eles poderiam ganhar quantias similares se tirassem fotos mostrando
“estupro, morte e subnutrição”. No entanto, quando eles tentam vender
suas fotos ao grupo de ajuda Médicos sem Fronteiras (MSF), elas são
rejeitadas por causa da má qualidade.
O branco que não muda nada
Por outro lado, enquanto Martens tenta aparentemente lançar luz sobre o
que chama de “nossa realidade distorcida”, espectadores questionam a
imparcialidade de seus retratos. Por exemplo, em uma sessão em Londres,
um funcionário do MSF observou que, no filme, os fotógrafos locais
abordam os médicos do grupo para vender suas fotos. Mas os fotógrafos,
na verdade, são comissionados na sede do MSF e os médicos não têm
controle sobre eles. Também foram levantadas sérias questões sobre a
premissa do cineasta de que a pobreza é um recurso a ser explorado e
sobre sua decisão de não intervir para deter o sofrimento das pessoas
que filmava.
“Não interferi na situação para que os espectadores pudessem ver um
quadro brutal das injustiças que acontecem”, respondeu Martens.
Esforçando-se para mostrar que não foi à RDC com o objetivo de mudar as
coisas ou oferecer falsas esperanças, ele acrescentou: “Deixei que a
política que determina a realidade determinasse este filme. Talvez eu
seja apenas um branco comum que vai para a África, mas não muda nada.
Eu sou vocês”.
Sem superioridade moral
“Diariamente, recebemos meia dúzia de ofertas de fotógrafos, mas
raramente recebemos propostas da África”, diz Adrian Evans, diretor da
Panos Pictures, sediada em Londres, que mantém um arquivo de cerca de
500.000 imagens do mundo todo. A Panos busca documentar questões mal
representadas, incompreendidas ou ignoradas. Evans diz que os
fotojornalistas africanos que ele conhece tendem a trabalhar para
agências de notícias internacionais, enquanto a Panos Pictures contrata
autônomos. “Suponho que, quando você vem de um país pobre, procura
segurança (no trabalho)”, acrescenta ele.
Respondendo à visão de Martens segundo a qual a pobreza é apenas mais
um recurso, Evans argumenta que padrões de exploração se repetem em
toda parte. “Acredito que tudo é transformado em mercadoria e a pobreza
não é exceção.” E quanto à afirmação de que os fotojornalistas lucram
com a pobreza africana? “Poderíamos dizer o mesmo de um fotógrafo
tirando fotos em um conjunto habitacional na Inglaterra”, argumenta
ele, acrescentando que muitos fotógrafos, na verdade, enviam dinheiro
voluntariamente às comunidades pobres.
Evans é cético quanto à ideia de que os fotojornalistas africanos não
agiriam como os ocidentais ao tirar fotos. “Várias experiências
mostraram que os fotojornalistas africanos tendem a tirar o mesmo tipo
de foto que os ocidentais tiram”, disse ele. “Todos são igualmente
culpados. Jornalistas nativos não têm superioridade moral”.
Fotógrafos podem educar
O diretor de Projetos Fotográficos do MSF, Bruno Decock, ainda não
assistiu ao filme, mas acredita que muitos dos retratos de Martens se
basearam em preconceitos sobre o grupo. “Quando tiro fotos, tento
contar uma história às pessoas. Tento explicar o que está acontecendo e
tento educá-las. Tomo muito cuidado para dar dignidade às pessoas e não
explorar crianças que talvez estejam sofrendo porque quero dar ao
público o que ele quer ver. Não quero reforçar o estereótipo europeu
segundo o qual todos os africanos são corruptos e estão morrendo por
causa da pobreza.”
Decock acredita que a exploração da miséria humana por algums agências
de ajuda pode ser excessiva, mas rejeita o chamado provocador de
Martens para que a pobreza seja aproveitada. “É perverso dizer aos
africanos que eles deveriam explorar a própria miséria. Não nego que a
exploração ocorra, mas isso realmente não se aplica a organizações
estabelecidas há muito tempo.”
A quem pertence a imagem?
Outro debate provocado pelo filme trata da propriedade das fotografias.
Um fotógrafo ou seu empregador normalmente detêm os direitos autorais
de todas as fotos. Quem deseja reproduzi-las precisa de permissão.
Decock afirma: “As leis de direitos autorais concedem a propriedade ao
fotógrafo, mas acredito que as pessoas retratadas também têm direito.
Penso que algo deveria ser devolvido à comunidade. Ao mesmo tempo,
muitos fotógrafos acreditam que suas fotos representarão uma mudança na
vida das pessoas.”
A ideia é compartilhada por Glen Tarman, diretor de defesa de causas da
BOND, organização que reúne ONGs de desenvolvimento internacional na
Grã-Bretanha. Ele afirma que “pode ser uma exploração representar
imagens no contexto do desenvolvimento. Capturar a imagem certa em uma
foto de uma ou duas dimensões é difícil, e os desafios em torno das
imagens são uma questão em aberto.”
“Às vezes, quando uma ONG usa uma imagem para contar uma história ao
público no norte (global), pode ser que a comunidade local nunca veja
qualquer benefício. Mas também é possível que a comunicação tenha um
efeito poderoso de provocar mudanças”, continua Tarman. “A grande
questão é: você contaria uma história sem as imagens, ou contaria a
história com as imagens, ainda que imperfeitas?”
Quem deveria estar no controle?
No fundo, Martens não está interessado apenas na propriedade das
fotografias. Ao longo do filme, ele aborda discussões mais amplas sobre
o colonialismo e a exploração. Para ele, os mesmos padrões dos tempos
coloniais, quando países europeus controlavam recursos africanos e os
exploraram em seu próprio interesse, persistem hoje. Agora, argumenta o
cineasta, multinacionais, ONGs e jornalistas perpetuam a mesma
“realidade distorcida” na qual os donos do recurso – no caso, a pobreza
– são impedidos de explorá-lo em benefício próprio. As estruturas que
reforçam os padrões da pobreza continuam firmes, com uns sofrendo e
outros no controle.
Artigo publicado no site da Fundação Panos.
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