Em sua visita à China, o presidente Barack Obama realizou uma “assembleia” com estudantes chineses na qual elogiou a transparência e fez uma preleção sobre o valor da liberdade de informação, apresentando-se como um “inimigo da censura” e afirmando que o livre acesso à informação é uma “fonte de poder”.
Os Estados Unidos, contudo, não estão livres da censura. O próprio presidente ameaçou ir aos tribunais para impedir a divulgação de fotografias de soldados norte-americanos torturando prisioneiros no Iraque, Afeganistão e Guantánamo – coisa que o Departamento de Defesa fez na época de George W. Bush. Isso é que é censura. E ela vai muito além desse estilo rude e totalitário de controle da informação.
Vamos citar apenas a questão das armas de urânio, das quais 1.000 toneladas teriam sido gastas na invasão norte-americana do Iraque, a maior parte em áreas povoadas onde milhões permanecem expostos à poeira radioativa do material queimado. O tema é praticamente ignorado pela mídia dos EUA.
O Pentágono mente sobre o fato e esconde há anos os efeitos desta substância letal, usada em granadas, bombas e balas por causa de sua capacidade única de penetrar blindagens de aço e paredes de concreto de abrigos antiaéreos. O órgão se recusa a revelar onde as armas foram usadas e nega aos soldados dos EUA os testes que mostrariam se eles foram contaminados. O Pentágono chegou a pagar jornalistas mercenários para, furtivamente, caluniar, difamar e minar de outras maneiras as fontes militares e repórteres que tentaram expor este flagelo (este repórter foi alvo de tais ataques de desinformação).
Neste país, uma das formas mais potentes de censura é cultivada pela mídia de propriedade privada – supostamente, um bastião da liberdade de expressão. Não há motivo para a mídia dos EUA não poder informar sobre o urânio e seu legado mortal nos lugares onde foi usado, como Iraque, Kuwait, Afeganistão e Kosovo, ou dentro e nos arredores das bases militares norte-americanas de Maryland ao Havaí. E mesmo assim a mídia não informa.
Só recentemente surgiram reportagens na SkyTV e no jornal The Guardian, ambos da Grã-Bretanha, revelando um aumento alarmante de defeitos de nascença incomuns e de câncer infantil em Faluja e outras cidades iraquianas, como Basra, Najaf, Bagdá e Samara – todas áreas urbanas onde houve grandes ataques das forças dos EUA tanto na invasão inicial, quando a maioria das armas de urânio foi usada, quanto nos combates posteriores contra grupos insurgentes escondidos.
O Guardian informa que, em Faluja, o número de defeitos de nascimento é 15 vezes mais que o normal. Embora a reportagem não mencione especificamente o urânio e afirme que médicos em Faluja “relutam em atribuir” o número espantoso ao intenso ataque à cidade promovido pelas forças dos EUA no final de 2004, ela afirma que os mesmos médicos citam “radiação e químicos” despejados sobre a cidade (uma segunda reportagem em outro jornal britânico, The Independent, torna mais explícita e direta a ligação entre os defeitos de nascimento e as armas de urânio). Não existem reportagens sobre o fato na mídia dos EUA.
Autocensura
O governo norte-americano não proíbe a CBS News ou a CNN de noticiar o fato, que representa um crime de guerra por parte dos EUA. O governo não entra em contato (pelo menos em geral) com os editores do New York Times ou do Washington Post para dizer: “Não informem sobre a crise da mortalidade infantil no Iraque, nem sobre a possível conexão com os armamentos dos EUA” (embora o governo tenha pedido, com sucesso, que o Times suspendesse por um ano a publicação de uma reportagem sobre o extenso programa de espionagem eletrônica da Agência de Segurança Nacional, e tenha conseguido pressionar os editores do jornal para que derrubassem um artigo de um repórter sobre o provável uso, pelo então presidente Bush, de um aparelho de ponto escondido durante os debates da campanha presidencial de 2004).
Na maior parte do tempo, os próprios editores destas organizações noticiosas simplesmente decidem que a reportagem não tem importância para o leitor ou então temem ser criticados pelo governo ou por outras organizações de mídia por serem antipatrióticos ou tendenciosos. O resultado final deste processo de autocensura, no entanto, é que o público norte-americano é ignorante sobre certas coisas tanto quanto um chinês. Na verdade, ainda mais ignorante.
Uma coisa que aprendi morando e trabalhando como jornalista e professor de jornalismo na China, na década de 1990, é que os chineses, com sua longa experiência de vida em uma ditadura totalitária na qual toda a mídia é de propriedade estatal e rigidamente controlada pelo estado e pelo Partido Comunista, têm plena consciência de que os meios mentem para eles e lhes escondem a verdade. Por isso, aprenderam a ler as entrelinhas, a perceber nos textos noticiosos sutis insinuações que os jornalistas honestos já sabem como introduzir em suas reportagens cuidadosamente vigiadas.
Eles também desenvolveram um sofisticado sistema privado de reportagem boca-a-boca chamado de xiaodao xiaoxi, ou, literalmente, “notícia de quintal”. O sistema costumava ser usado por vizinhos e amigos. Quando o telefone se tornou onipresente, permitiu a transmissão rápida por longas distâncias. E agora há a internet, que, embora seja controlada sistematicamente pelo que ficou conhecido como “Grande Firewall da China” (de fato, toda a China é como uma vasta intranet corporativa, que bloqueia o acesso a websites externos), ainda permite o fluxo do e-mail. Isto é quase impossível de monitorar, particularmente quando as mensagens não são disparadas ao mesmo tempo para um grande número de destinatários.
Assim, na China, informações sobre corrupção, rebeliões ou greves locais e lutas internas no governo ou no partido, ou notícias importantes sobre o mundo exterior que o governo quer barrar, conseguem circular amplamente, apesar de um enorme aparato de censura estatal. Esta rede noticiosa alternativa e altamente pessoal funciona porque o povo chinês sabe que a mídia mente e o deixa no escuro, mas quer atravessar essa cortina oficial de segredo e controle.
Nos EUA, em contraste, temos um público que, na maior parte, ignora alegremente o grau em que nossas notícias estão sendo censuradas, filtradas e controladas. Como o presidente (quem sabe mais que ele?), nos vangloriamos de nossa “imprensa livre” e nossa sociedade aberta. E de fato, como jornalista, sou livre para escrever o que quiser.
Considerando, no entanto, que a maioria das pessoas recebe as notícias de jornais, rádios e TVs de propriedade de corporações, na verdade não importa o que eu e outros jornalistas críticos do sistema escrevemos, porque isso não aparecerá na mídia corporativa. Como a maioria dos norte-americanos, ao contrário da maioria dos chineses, supõe que vive em uma sociedade com uma imprensa livre e sem censura ou controle da informação, esta maioria nem sequer se preocupa em buscar algo além da informação oferecida de colher pelas fontes da mídia corporativa.
Ignorância
O resultado é que, em minha experiência, encontrei camponeses nas províncias de Jiangsu ou Anhwei que eram, em muitos casos, mais bem informados sobre seu próprio país e o mundo do que o norte-americano típico do subúrbio. Certamente, se um norte-americano quiser ficar bem informado, toda a informação que ele procurar estará disponível. Mas ele precisará, em primeiro lugar, ter consciência de que não está obtendo certas informações por meio das fontes óbvias; depois, ter vontade de obtê-las; e então fazer um esforço para encontrá-las. A maioria dos norte-americanos carece desses três elementos.
A lista de histórias e questões censuradas nos EUA, sobre as quais o público norte-americano não sabe quase nada, é impressionante, e vai muito além do mero uso de armas sórdidas.
Os norte-americanos sabem, por exemplo, que todas as outras democracias ocidentais modernas têm alguma forma de auxílio-saúde nacional – seja um sistema estatal, como na Grã-Bretanha, ou um modelo de fundo único, como no Canadá, ou algum sistema híbrido, como na França ou na Suíça – e que, em todos esses países, os sistemas são tão populares que sobreviveram a décadas de governos conservadores? Não. Nossa mídia corporativa dá voz, no lugar disso, aos críticos excêntricos desses sistemas, fazendo-nos acreditar que eles são odiados por seus cidadãos.
Os norte-americanos sabem que os EUA deixaram de ter a melhor qualidade de vida do mundo, e não estão mais nem perto disso? Não. Porque a mídia norte-americana continua a retratar os EUA como o “número um”.
Os norte-americanos sabem que a Al Qaeda foi, na verdade, uma criação da CIA? Não. Esta importante peça de informação não é mencionada na mídia dos EUA, que sempre começa a contar a história da organização a partir de 1988, o ano em que ela foi batizada, quando na verdade suas origens datam do armamento dos mujahedin pela CIA e pelo serviço de inteligência paquistanês ligado à CIA, o ISI, no final dos anos 1970 e início dos 1980, quando os EUA queriam criar e apoiar a resistência à ocupação soviética do Afeganistão.
E, é claro, raramente vemos a matança de mulheres e crianças que nossos queridos “heróis” soldados conduzem no Iraque e no Afeganistão em nosso nome.
Não há censura nos Estados Unidos? Francamente, senhor presidente. O senhor pode nos enganar, mas pelo menos não insulte a inteligência de seu público chinês.
Dave Lindorff é jornalista e colunista radicado na Filadélfia. Seu trabalho está disponível em www.thiscantbehappening.net. Artigo publicado no site Common Dreams.
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