Claude Lévi-Strauss faria hoje 101 anos. Com sua morte, há menos de um mês, multiplicaram-se por todas as partes manchetes em torno de sua vida. Dentro e fora das universidades, renova-se o interesse por sua obra, assim com a curiosidade de qualquer leitor a respeito deste homem em particular e da antropologia em geral. Quem seria este homem que declarou serem os trópicos tristes? Como? Por quê? Tentarei aqui dar uma pálida ideia das muitas luas que este pensador ilumina.
Os trópicos seriam tristes por vários motivos, entre eles, menos por sua elite formar, como a paulista, “uma flora indolente e mais exótica do que imaginava”, mas por suas cidades, como São Paulo, passarem “do viço à decrepitude”. Ora, aqui está o tema da duração, ligado intrinsecamente a uma dialética entre o próximo e o distante a que me referirei abaixo. As cidades tropicais padeceriam do problema do mundo, o crescimento desenfreado levando à produção de mais e mais energia, e logo, entropia. http://pt.wikipedia.org/wiki/Entropia_(termodinâmica)
Infelizmente, um pouco como já ocorrera em tempos em que o estruturalismo esteve mais em voga, décadas atrás, a morte de Lévi-Strauss leva a uma disputa por seu legado e à multiplicação de incompreensões, frases feitas, vaticínios, ainda que um pouco menos críticos do que era o costume quando ele vivia. Lemos por aí que Lévi-Strauss seria “o pai da antropologia moderna” (condição que ele negou várias vezes) e ao mesmo tempo “reformador da disciplina”; seria o “introdutor do conceito de estruturalismo” e teria buscado “padrões subjacentes de pensamento em todas as formas de atividade humana, concluindo que nossa mente organiza o conhecimento em pares binários tanto no mito como na ciência”, e assim por diante. Ora, sabemos que toda divulgação implica perda, mas Lévi-Strauss não merece este tipo de mau trato, especialmente em sua morte, e sim um pouco mais de rigor e honestidade.
Entre suas qualidades, estava a criatividade, a escrita, a profundidade e a erudição. Muito criticado em vida, talvez não tenha sido sempre compreendido por ser mais comentado do que lido, mesmo nos círculos de especialistas (notadamente os estadunidenses). Suas Mitológicas permanecem um tratado inexplorado, em que filosofias e conhecimentos do mundo ameríndio dialogam com ocidentais.
Como falar de C. Lévi-Strauss para um público que não apenas pouco conhece, mas parece mesmo ser pouco afeito à reflexão antropológica? Brasileiros, relevamos sua passagem pelo Brasil e sua ligação sentimental conosco. Mas sua relação com o Brasil não era apenas sentimental. Como indica em inúmeras entrevistas, ela lhe mostrou as possibilidades do “distanciamento e contraste” para o conhecimento. Neste sentido, talvez fosse importante revelar, por exemplo, o elogio que fez a Euclides da Cunha, em sua resenha a Os Sertões, publicada em 1944 em American Anthropologist, por “lembrar ao povo brasileiro que as conquistas da civilização industrial não são tão formidáveis e incontestáveis que ele devesse tentar esquecer, ao invés de se orgulhar, daquelas fontes virgens de natureza a humanidade, as quais, dentre todas as nações, ele pode se fiar para a construção de um futuro melhor”.
Segundo Lévi-Strauss, Euclides teria “se recusado a ser um school boy dos mestres europeus” e demonstrado que “para o Brasil existir, seus aspectos mais primitivos, seus pontos mais feios devem ser aceitos; não para deles se envergonhar, mas para deles se cuidar e amar com a maior paciência e compreensão”. Em resumo, Euclides teria algo de antropólogo nativo.
O pensamento científico e o selvagem
Distanciamento e contraste são assim chaves para a compreensão à moda de Lévi-Strauss, de uma antropologia que se atém menos ao desvendamento de igualdades e mais às diferenças, ou como as diferenças se diferenciam. É-lhe fundamental, por exemplo, contrastar o pensamento científico ao selvagem (este presente em qualquer civilização, na arte, por exemplo), por “trabalhar com significados”, simultaneamente sensíveis e inteligíveis, enquanto o científico “trabalha com conceitos”, buscando resultados pragmáticos.
Desde jovem, Lévi-Strauss desaponta-se com a filosofia, o que o traz para a carreira de etnólogo e para o Brasil. Foi-lhe desde logo evidente a possibilidade de a antropologia expandir a filosofia ocidental, renovação necessária e como veremos, mais do que complementação, uma necessária correção do curso individualista que tomamos. O contraste entre modos filosóficos outros, entre eles o ameríndio, foi aprofundado por outro desapontamento, posterior, no início da 2ª Guerra, com sua própria incompreensão da política: seu engajamento juvenil pacifista e socialista o teria impedido de avaliar devidamente as dimensões do nazismo. Volta então seus estudos a temas como parentesco e mitos, mas sem deixar de pretender contribuir para renovar o entendimento do que chama de “plano sociológico” da vida social.
Para Lévi-Strauss, as várias formas de pensamento selvagem relativizam não apenas o pensamento científico, mas toda a história ocidental. É a partir da compreensão do outro que poderíamos vir a ter uma compreensão antropológica de nós mesmos, sem abdicarmos de quem somos. Dita de modo excessivamente resumido, a antropologia de Lévi-Strauss possibilita a renovação de uma concepção egocentrada do mundo, a partir de um sujeito produtor, ator e criador, segundo a qual o inferno são os outros. No processo, altera-se ainda nossa compreensão dos objetos, da relação pessoa-objeto e de uma infinidade de outros temas básicos, como o sentido das contradições, as transcendências, as utilidades. Pois os mitos, como as regras de parentesco, têm suas funções, “não se limitam a ser, servem para alguma coisa” (Origem dos modos à mesa, Cosac & Naify, pg. 205), resolver problemas, contradições sociológicas (parentesco) e sócio-lógicos (mito).
Saudades, admiração
Uma palavra final sobre a relação de Lévi-Strauss com outros povos, além dos ameríndios. É notável que voltou apenas uma vez ao Brasil, em 1985. Suas saudades, ainda que reais, deveriam ser menores que a admiração por outros povos. Das viagens que fez, além dos constantes verões em seu castelo em Lignerolles, na Cote d’Or, esteve mais de uma vez na costa noroeste da América e no Japão, que tanto admirou, inclusive por sua capacidade para englobar o modo de vida burguês.
Até o fim da vida, não nega incapacidade – para ele estrutural, dada sua posição como observador próximo demais – para entender o Islã como religião da tolerância, explicitada em Tristes trópicos, como notou Caetano Veloso em artigo na Folha de S.Paulo de 04/11/09.Apesar de críticas duras neste livro de 1955, algumas a meu ver injustificadas, por exemplo, a manifestações artísticas islâmicas, esta postura se explica ainda pela resistência de Lévi-Strauss às lógicas metonímicas-sacrificiais, contrapostas por ele às metafóricas-totêmicas em O pensamento selvagem.
Marcos Lanna, professor associado do programa de pós-graduação em Antropologia e chefe do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, escreveu este artigo para o Opera Mundi.
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