A resistência contra a ditadura militar teve palavras de ordem claras em defesa da vida e dos direitos do povo, entre elas: “a dívida externa, a repressão… são os que venderam a nação”. Na época, a militância não duvidava que a primeira era parte do projeto de dominação, cobrando um alto preço em vidas e destruindo a capacidade produtiva do país, gerando dependência, pobreza e fome.
Hoje a direita arranca os cabelos diante da decisão presidencial de pagar os juros da dívida externa com reservas do Banco Central, mas não questiona o problema de fundo: ela se calou durante todos esses anos sobre quem foram os responsáveis, assim como sobre a origem das negociatas que aumentaram a dívida externa.
Por isso é necessário recordar a falta de coragem e vontade política dos governos a partir de 1983, negando-se sistematicamente a investigar a origem fraudulenta que aprofundou o projeto neoliberal, em especial durante o governo de Carlos Menem, que privatizou as empresas nacionais e os recursos energéticos, promoveu a venda indiscriminada de terras, a destruição e a expropriação dos recursos naturais, aprofundado o neoliberalismo até o presente, tudo isso com a cumplicidade de governadores provinciais.
Hoje, o governo deveria refrescar a memória assumindo a “Causa Olmos” e impulsionando a auditoria sobre a dívida externa, que, 10 anos depois de o juiz federal Ballestero ter enviado o auto ao Parlamento, continua sem tratamento. No entanto, os deputados de diversos partidos têm bloqueado a causa, negando-se a realizar a investigação pertinente para distinguir a dívida legítima da ilegítima.
Durante o mandato presidencial de Néstor Kirchner, anunciou-se que a Argentina havia pagado a dívida externa ao FMI e não queria mais saber desse organismo de rapina. Mas a presidente Cristina Fernández de Kirchner, recorrendo ao “Decreto de Necessidade e Urgência”, quer utilizar fundos reservados do Banco Central para pagar a soma de 6,569 bilhões de dólares de juros da dívida externa, por meio do Fundo do Bicentenário.
O resto da história é conhecida: o pedido de renúncia de Martín Redrado e todo o conflito em torno do assunto aproveitado pela direita para desestabilizar o governo, com a total cumplicidade do vice-presidente Julio Cobos, que continua no cargo com uma absoluta falta de ética política. Se quer ser opositor ao governo, deveria fazê-lo a partir de outro lugar. O pandemônio político está na moda, enquanto o governo, incorrendo em contradições e descuidos, se especializa em dar tiros pela culatra.
Abutres e ratos
É interessante ler as declarações da presidente quando comparou “os fundos abutres com os ratos do Riachuelo”. Especialmente porque os ratos e a contaminação continuam apesar das promessas de saneamento que alguma vez foram feitas, mas nunca se concretizaram.
Algo semelhante ocorre com a economia do país, tão contaminada quanto o [rio] Riachuelo [afluente do rio Paraguai] e que pede outra “limpeza”. Mas para tanto seria necessário ir ao fundo do problema, e não ao Fundo do Bicentenário, sem fundo. E assim, definitivamente, voltamos à velha história: “Quanto mais pagamos, mais devemos e menos temos”.
O povo quer saber, desde 25 de maio de 1810 até hoje: por que a Argentina deve submeter-se a tribunais dos EUA e tem uma dívida externa contaminada? Quais são as razões para não fazer uma auditoria e saber o que devemos e o que não devemos?
O DNU deve ser utilizado para superar a fome e a pobreza que afetam grande parte de nosso povo; para recuperar o patrimônio perdido, as terras e recursos naturais, as empresas nacionais básicas e lutar para recuperar a soberania nacional, hoje lamentavelmente perdida.
A presidente diz: “Analisar se a dívida externa é legítima foi, durante o primeiro momento. Democrático. Mas não há como falar de dívida ilegítima, por mais que soe bem”. Não soa bem, soa irresponsável e dramática esta afirmação superficial. Este argumento leva a justificar o injustificable. A dívida é parte da repressão e está manchada de sangue; é como querer justificar as leis de impunidade, sancionadas durante o governo de Raúl Alfonsín.
A “Lei de Meios de Comunicação” imposta pela ditadura militar esteve em vigor durante todos esses anos, mas o governo teve a vontade política de enfrentar e superar a forte resistência dos interesses corporativos e de uma oposição recalcitrante.
Muitos setores da sociedade apoiam essas medidas e leis justas, para o bem do povo, como o subsídio às crianças de 180 pesos; a reforma da Corte Suprema; a nulidade das leis de impunidade. Não é impossível adotar medidas que transformem a realidade do país, bastam clareza conceitual e vontade política.
Audácia
Então por que não ter a mesma atitude e audácia para encarar o problema postergado da dívida externa, havendo ferramentas legais para fazê-lo?
A presidente diz que não pensa em promover nenhum debate ou revisão sobre a legitimidade da dívida quando é evidente que, nas atuais políticas públicas de direitos humanos, o respeito e a garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais do povo ainda brilham por sua ausência. O governo atribui ao período 1976-1983 a política de direitos humanos, sem levar em conta o que ocorre nessa matéria, deixando estes em um “limbo” que oscila entre a indiferença e a impunidade.
Seria de suma relevância, portanto, somar as vontades políticas dos setores sociais e técnicos para obter a tão falada transparência e soberania econômica, no lugar de voltar a estender a mão para pedir esmola ao FMI.
Existem legisladores progressistas, organizações populares e econômicas que há anos vêm trabalhando e propondo respostas à situação da dívida externa e à dependência suportada pelo país, assim como sugestões sérias para encontrar caminhos que permitam recuperar o patrimônio e a soberania nacionais.
O conflito com o Banco Central pode ser para a presidente uma oportunidade para analisar com humildade a administração dos assuntos públicos, tendo em mente que ninguém é dono absoluto da verdade e que, portanto, é de “necessidade e urgência” abrir os espaços de diálogo, inclusive com setores que não estão de acordo com algumas decisões governamentais.
Uma coisa é ouvir e outra, escutar; uma coisa é olhar e outra, enxergar. É preciso aprender a escutar e enxergar ao mesmo tempo para saber por onde caminhar no país, como dizia Angelelli: “Devemos ter um ouvido voltado ao Povo e outro ao Evangelho para saber aonde ir”. Nesse sentido, o debate parlamentar sobre a dívida externa torna-se indispensável para encontrar uma solução justa e fortalecer a democracia.
O governo pergunta de onde vai tirar os fundos para honrar os compromissos assumidos pelo país.
Algumas sugestões
A Lei de Mineração é uma ofensa ao povo. É necessário e urgente modificá-la, pois assim seria possível obter os recursos necessários e preservar o meio ambiente, impedindo que empresas sem escrúpulos continuem devastando e saqueando o país.
Essa norma foi sancionada durante o “menemato”, com a cumplicidade dos governos provinciais. Ninguém ignora que essas empresas ficam com 97% do ouro, prata, cobre e minérios estratégicos com uma simples declaração jurada; deixando desolação, contaminação da água, destruindo a capacidade produtiva das províncias e gerando enfermidades e desemprego.
Este é outro dos problemas estruturais e estratégicos que o governo deveria assumir com responsabilidade, mas a presidente vetou a Lei de Proteção dos Glaciares, a fim de favorecer os interesses da empresa Barrick Gold e de governadores que buscam favorecer empresas e não o povo.
O governo tem hoje a grande oportunidade de superar a “velha Argentina” construindo uma pátria livre e soberana; o dilema será então saber se a presidente encontrará a clareza, a humildade e a coragem para superar as estruturas de dominação.
O povo não perde a esperança de que outra Argentina – e outro mundo – sejam possíveis.
Adolfo Pérez Esquivel é ativista de direitos humanos e ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1980.
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