Nos últimos 60 anos, a população mundial duplicou. No mesmo período, o
consumo de água pelas diferentes atividades humanas aumentou em sete
vezes, enquanto a quantidade de água existente permaneceu igual.
Acentuou-se, na mesma proporção, a degradação desse recurso fundamental
para o desenvolvimento de todas as formas de vida. A deterioração e o
uso excessivo têm relação direta com o homem, em especial com o
crescimento e a diversificação das atividades agrícolas e industriais,
o aumento da urbanização e a intensificação das ações humanas nas
bacias hidrográficas. A combinação da poluição dos mananciais com o
desperdício – além do fato de existirem limitações naturais em certas
regiões do planeta – é a principal razão de a escassez já ser um
problema real para boa parte da população, em especial para aquela que
vive nas grandes cidades.
Estudos recentes alertam que 1 bilhão de pessoas não têm acesso a água
de boa qualidade e 2,6 bilhões (algo em torno de 40% da população
mundial) não têm acesso a saneamento adequado. Ao contrário do que se
pode pensar, parcela significativa desse montante não está em áreas
remotas, mas sim nas grandes cidades, onde vive metade da população
mundial, ou 3,3 bilhões de pessoas. Até 2025, as previsões apontam
para um aumento populacional de 2 bilhões. Esse crescimento se dará
principalmente nas cidades dos chamados “países em desenvolvimento”. O
aumento da população urbana, aliado à poluição e ao mau uso da água,
compõe um quadro preocupante. Garantir água de boa qualidade nas
grandes cidades será um dos principais desafios deste século.
Estresse hídrico
O chamado “estresse hídrico” – relação entre a disponibilidade natural
e os diversos usos que o homem faz da água, como a produção de
alimentos, o abastecimento público, a geração de energia, a diluição de
esgotos, entre tantos outros – já é uma realidade em metrópoles
mundiais, inclusive nas capitais de países ricos. Um dos casos
emblemáticos é o de Londres, que depende dos reservatórios formados
pelos rios Tâmisa e Lee. A rede de distribuição de água da cidade é
muito antiga (mais da metade excede os cem anos e um terço passa de
150) e apresenta altos níveis de perda, devido aos vazamentos. A
situação se agrava com o prolongado período de estiagem e a consequente
diminuição do volume de chuvas nos últimos anos. Isso tem levado as
autoridades locais a planejar captações de água em mananciais distantes
e dessalinização de águas salobras e marinhas para atender a demanda
crescente.
Casos como o da capital inglesa tendem a surgir com mais frequência no
cenário mundial em função de mudanças no regime de chuvas. Essas
mudanças vêm ocorrendo em vários locais do planeta, inclusive no
Brasil, e prenunciam um cenário ainda mais sombrio de restrição do
acesso à água em um futuro próximo, com proporções gigantescas caso as
previsões sobre as alterações no clima, já nas próximas décadas, se
confirmem.
A boa notícia é que algumas cidades já acordaram para a proteção de
suas fontes de água e outras sempre estiveram despertas. A preservação
das áreas de mananciais para abastecimento de Tóquio teve início em
1901. Essas áreas estão localizadas nas nascentes dos principais rios
(Tama, Tore e Ara) e abrigadas por uma imensa floresta de 21.631
hectares. A manutenção dessa floresta garante o fornecimento de água em
quantidade e qualidade para o maior aglomerado urbano do planeta – pois
vivem na Grande Tóquio mais de 31 milhões de pessoas, que consomem 6,23
bilhões de litros de água a cada dia, o equivalente a 200 litros per
capita.
Já Nova York iniciou, durante a década de 90, um amplo programa de uso
racional da água e proteção das bacias hidrográficas, que se mostrou
mais econômico do que o investimento necessário para ampliar e tratar
água de pior qualidade. Entre as ações desenvolvidas destacam-se um
programa de subsídios para a substituição de todas as válvulas de
descarga em cada uma das residências – o que resultou em diminuição do
consumo e conseqüente aumento da sobrevida dos mananciais disponíveis
para abastecer a cidade. Também foi executado um programa de gestão
territorial compartilhada, incluindo a aquisição, pela prefeitura, de
terrenos em porções ambientalmente sensíveis das áreas de mananciais, e
acordos com os proprietários das áreas de mananciais, que, em troca de
exercer proteção, passaram a receber compensações financeiras.
Mas o avanço na proteção dos mananciais e a gestão dos recursos
hídricos ainda é exceção. Xangai, uma das maiores cidades chinesas,
enfrenta enormes desafios nessa área. Sua maior fonte de água, o rio
Huangpu, está tão contaminada por poluentes industriais e agrícolas que
não registra vida aquática há mais de vinte anos. O rio Yang-tsé, a
fonte alternativa de água, vem sofrendo aumento de salinidade em seus
trechos mais baixos, resultado dos reduzidos níveis liberados pela
maior barragem do mundo, a das Três Gargantas. Ao mesmo tempo, o lençol
freático existente no subsolo está sofrendo crescente contaminação pela
água do mar. A situação na capital do país não é muito melhor: dos 21
reservatórios superficiais que abastecem Pequim, quatro estão
totalmente secos e apenas três são considerados fontes de água
satisfatórias para o consumo humano.
A Cidade do México é o principal exemplo de superexploração das águas
subterrâneas. Estima-se que seja extraído dos aquíferos da região um
volume de água que excede em 30% a 65% o da recarga. Em alguns locais,
o afundamento do solo, provocado pela redução do nível das águas
subterrâneas, chegou a 7,5 metros – o que também tem provocado mais
inundações e danos à rede de abastecimento de água e de drenagem,
contaminando todo o sistema. Para piorar o quadro, as áreas de recarga
dos mananciais vêm sendo ocupadas pela expansão da cidade, que cresce,
em média, 250 hectares por ano. Para cada hectare ocupado, perdem-se
1.700 m³ de recarga nos aquíferos por ano – quantidade de água
suficiente para abastecer 1.500 famílias.
Métodos caros e vulneráveis
As fontes alternativas da Cidade do México estão cada vez mais
distantes e os métodos para trazer água são caros e vulneráveis, além
de fomentar a disputa pela gestão do recurso entre os diferentes
estados da federação. Apesar de todas essas dificuldades, o consumo
diário per capita dos 19 milhões de habitantes da capital mexicana é de
abusivos 364 litros/dia – enquanto a ONU recomenda um consumo diário
per capita de 110 litros. O risco de escassez aumenta ainda mais diante
da cifra de água desperdiçada: estima-se, de acordo com o último
levantamento disponível, que a perda de água na distribuição
corresponda a 35% do total retirado dos mananciais.
O Brasil, pátria de 12% de toda a água doce da superfície do planeta,
disputa com o México o troféu de quem joga mais água limpa fora. Um
estudo divulgado em novembro passado pelo Instituto Socioambiental
(ISA) lançou luz sobre a situação do abastecimento público e do
saneamento básico nas 27 capitais brasileiras. O levantamento revela
que 45% da água retirada dos mananciais das capitais são desperdiçados
em vazamentos, submedições e fraudes. A quantidade de água jogada fora
é estimada em 6,14 bilhões de litros por dia (o equivalente a 2.457
piscinas olímpicas) e seria suficiente para atender ao consumo diário
de 38 milhões de pessoas – isto é, toda a população de um país como a
Argentina.
Os principais dados quantitativos extraídos do estudo são altamente preocupantes:
Abastecimento
• Apenas seis das 27 capitais atendem à totalidade de sua população.
• Apesar de a média de cobertura ser de 90%, as capitais Porto Velho, Rio Branco e
Macapá cobrem apenas 30,6%, 56,2% e 58,5% de suas populações,
respectivamente.
Consumo
• A média de consumo per capita nas capitais é de 150 litros por dia (a despeito da recomendação de ONU, de 110 litros).
• São Paulo, Rio de Janeiro e Vitória apresentam os maiores consumos: mais de 220 litros/habitante/dia.
Perda (por vazamentos e outros fatores)
• A água perdida diariamente nas capitais seria suficiente para abastecer 38 milhões de pessoas/dia.
• Em termos percentuais, a campeã do desperdício é Porto Velho, com 78,8% do total.
• Em termos de volume perdido, o Rio de Janeiro ganha, jogando fora diariamente um volume igual ao de 618 piscinas olímpicas.
Outro ponto que o estudo avaliou foi a situação do esgotamento sanitário nas grandes cidades do país.
O descaso e a ausência de investimentos no setor, em especial nas áreas
urbanas, são flagrantes. Quase metade da população residente nas
capitais brasileiras (45%) tem seus esgotos despejados nos rios e no
mar sem qualquer tratamento. E uma parcela significativa dessa
população (13 milhões de habitantes) não dispõe sequer da coleta dos
resíduos, convivendo de perto – nas portas ou nos fundos das casas –
com a imundície e a poluição. Manaus, Belém e Rio Branco apresentam os
piores índices, com menos de 3% de seus moradores atendidos pelo
serviço.
Aquífero Guarani
Lixo, enchentes, contaminação dos mananciais, água sem tratamento e
doenças apresentam uma relação estreita. Diarreias, dengue, febre
tifóide e malária, que resultam em milhares de mortes anuais,
especialmente de crianças, são transmitidas por água contaminada por
esgotos humanos, dejetos animais e lixo. Nada menos que 70 % das
internações na rede pública de saúde estão relacionadas com doenças
transmitidas pela água.
Um dos maiores trunfos do Brasil em relação à garantia de abastecimento
é o Aquífero Guarani, maior reserva de água doce subterrânea do mundo.
Do potencial de água renovável que circula nessa reserva, entre 24% e
48% podem ser explorados. No entanto, esse fabuloso recurso não está
isento de problemas. Primeiro, devido à contaminação, que já vem
ocorrendo em decorrência de vários fatores, entre eles, o grande número
de poços operados e abandonados sem tecnologia adequada.
Depois, porque a área do Guarani se distribui por vários territórios
nacionais: 70% no Brasil e o restante em Argentina, Paraguai e Uruguai.
Tal peculiaridade torna necessária uma vigorosa ação conjunta dos
quatro países no sentido de defender sua soberania sobre o aqüífero e
regular seu uso de forma justa e parcimoniosa.
A sustentabilidade das grandes cidades e metrópoles mundiais está
diretamente vinculada à existência e manutenção de fontes de água para
o abastecimento público. É fundamental que os governantes adotem
políticas públicas que promovam a proteção dos mananciais, a ampliação
das áreas permeáveis, a diminuição dos desperdícios e perdas,
juntamente com a racionalização e o uso mais equitativo desse recurso
fundamental. A história mostra que isso não ocorrerá sem que sejam
pressionados pelas respectivas sociedades.
Marussia Whately é arquiteta e coordenadora do Programa Mananciais
do Instituto Socioambiental (ISA), em São Paulo. Artigo publicado no
jornal Le Monde Diplomatique Brasil.
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