No além-mar há um reino muito distante que, embora pareça surreal, existe de fato. Seus habitantes são famosos pela suposta amistosidade, por falar muito e comer derivados do trigo em abundância.
Nessas terras, que se estendem numa faixa comprida de norte a sul, um certo governante é amado e odiado por seu povo. Os que o adoram, claro, são maioria, senão este dito (e não distinto) homem não estaria no poder. Os que por ele sentem repulsa, bem, esses tentam convencer seus patrícios de que o tal não serve para o cargo, mas nada parece mais difícil do que ir contra a maré mediterrânea.
Explico: afeito a noitadas e brincadeiras (de mau gosto, na opinião dessa narradora), o senhor todo-poderoso se envolveu em inúmeros escândalos em sua trajetória. Corrupção de menores de idade, prostituição e tráfico de influências são alguns dos crimes dos quais ele poderia ser acusado. Como o reino é muito religioso, abriga até mesmo a sede mundial de uma igreja conhecidíssima, com milhões de fiéis, veja só! –, supõe-se que tais transgressões fossem vistas com desconfiança e senso crítico. Não, nada disso. Sua credibilidade é inabalável.
Ele tem um carisma que agrada a população, a bem dizer. É um touro, um forte, um bufão. Arregaça as mangas para ir ao lavoro e distribui essas imagens por todos os lados (já vi esse filme antes…). Sim, ele pode fazê-lo: tem todas as cartas do reino na manga. Se seus súditos caminham por uma rua, lá está ele num telão. Se ligam as televisões em casa, novamente o governante aparece. Mudam de canal, e nada: ele é praticamente onipresente (já li esse livro antes…). E sempre com uma imagem positiva. Oras, quem vai falar mal do todo-poderoso?
Em sua corte, sobram os favores pessoais. Clientelismo e favoritismo correm soltos no âmbito privado, reduzindo a cena pública a decisões políticas menores. Assim, o que vale mesmo são as discussões na calada da noite, pelos corredores do castelo. Claro, de um modo ou de outro isso também chega aos aldeões e aos camponeses, que ficam felizes quando são beneficiados por algum tipo de migalha real.
“É um fanfarrão”, dizem as vozes dissonantes. Outrora elas ecoavam mais, mas esse tempo passou – foram cassadas, demitidas, tornadas roucas; ou já haviam chegado ao poder antes e, infelizmente, não convenceram.
Até que, no ano passado, sua esposa, a rainha, veio a público declarar que o governante era de fato um traste. Sentia-se magoada e disposta a contestá-lo e enfrentá-lo. Podia ser um momento propício para algum tipo de convulsão. Afinal, além da crise pessoal, o reino passava por um período econômico difícil! Somava-se aos anos de PIB (Produto Interno Bruto) reduzidíssimo uma crise externa e sistêmica.
Uma situação grave, sem dúvida – o reino, que em meio a toda a convulsão política dos anos 1970 e 1980, virara sinônimo de país rico, de “primeiro mundo”, como se gostava de dizer por aqui, agora integra o grupo dos países cuja fragilidade econômica preocupa a Europa. Além disto, vale registrar que o antigamente bucólico sul do país foi transformado por famílias poderosas e por gestores públicos a elas associados na lata de lixo da indústria do velho continente.
Contudo, em tempos de sociedade do espetáculo, a celebridade que tem as câmeras voltadas para ela consegue mais tempo de convencer o outro de suas opções. Não importa em quantas orgias com políticos e garotas de programas em ilhas particulares você tenha se envolvido. Aliás, dentro dessa lógica, os que não se deram por vencidos e considerassem apoiar a primeira-dama sempre poderiam ser comprados – o governante era dono de uma fortuna pessoal enorme, vale lembrar.
Mais uma chance de contestar o modus operandi do Estado jogada fora…
Agora, o todo-poderoso está solteiro e declarou para quem quisesse ouvir: “As mulheres fazem fila para mim”.
Nada mais se podia esperar. Fora de contexto, essa já seria uma frase que demonstraria um ego inflado, uma confiança exacerbada. Um nariz empinado (ou quebrado em um protesto). Mas sabendo como funciona atualmente o reino da Itália e Silvio Berlusconi, só podemos compreender que, além do que já foi dito aí em cima, existe uma presunção de que o todo-poderoso tudo pode. Inclusive subjugar as mulheres e tratá-las como as súditas que vão lamber o chão que ele pisa. E algumas, por mais hediondo que isso possa parecer, talvez o façam.
É um delírio que se torna realidade.
*Maíra Kubík Mano é editora do Le Monde Diplomatique Brasil, mantém o blog Viva Mulher e escreveu este artigo a convite do Opera Mundi
Siga o Opera Mundi no Twitter
NULL
NULL
NULL