Alguns bons escritores encontram sua assinatura sem procurar: ela nasce da prática, da repetição, do trabalho da própria atividade literária. Outros a buscam de forma consciente e clara, num diálogo aberto com o leitor. José Saramago foi um desses.
Há um jeito próprio de Saramago escrever, inaugurado em 1980, com “Levantado do Chão”, pelo escritor. Como disse num artigo sobre ele Adriano Schwarz, professor da Escola de Artes e Ciências Humanas da USP, Saramago adota a partir deste livro “o uso intensivo da vírgula como sinal fundamental da pontuação do texto, ocupando a função de todos os outros sinais, menos o ponto final”.
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A forma Saramago se manteve nos romances a partir de então, e pode muito bem ser reproduzida. Por isso mesmo, muitos o liam como um repetidor de si próprio, com seus parágrafos sem hora para acabar, suas “circunavegações” em torno de pequenos temas, suas passagens radicais do narrador para as personagens que, como um novelo, enrolavam-se sobre si mesmo para ganhar a estrutura de um romance.
É possível tentar emulá-lo, e não custa deixar o exemplo mais evidente. Em 2003, o repórter da Folha de S.Paulo Ivan Finotti, num texto irônico, descreveu-o assim: “O homem sentado chama-se José de Souza Saramago, nasceu na aldeia de Azinhaga, em Portugal, foi serralheiro, mecânico, desenhista industrial, funcionário público, editor, tradutor e jornalista, é escritor de profissão e tem oitenta anos, posto que à vista pareça menos idoso. Não está listado no rol das profissões deste homem, mas uma de suas atribuições mais frequentes tem sido a de criar controvérsias. A última delas começa assim, Até aqui cheguei, de agora em diante, Cuba seguirá seu caminho, e eu fico onde estou.”
A possibilidade e a vontade de reproduzir algumas de suas técnicas só mostram o quanto seu estilo foi, ao mesmo tempo, desafiador para os leitores e popular. Como poucos escritores, Saramago pode ser criticado ou elogiado até por quem não o leu, mas sabe que seus parágrafos são longos, seus livros não usam aspas ou travessão, há letras maiúsculas depois das vírgulas indicando o início da fala das personagens. A discussão literária, com ele, era um direito garantido a quem quer que se dispusesse a enfrentar sua obra.
Quando o Prêmio Nobel veio, nos anos 1990, a polêmica divisão dos portugueses entre os fãs de Saramago e os de António Lobo Antunes ganhou força internacional – eles, que não se falavam, alimentavam o Fla-Flu literário. Ainda que Lobo Antunes tenha a preferência dos críticos, é preciso reconhecer que ambos tinham mãos fortes e projetos opostos, ou seja, os dois são craques.
Para além disso, havia a política: Saramago era um comunista dos mais clássicos, para não dizer caretas, e transpôs para sua literatura toda essa sua formação e engajamento. Mesmo quando vai para o passado, um de seus olhos estava necessariamente visualizando o presente. Talvez o exemplo mais radical disto seja o romance A Jangada de Pedra, que trata da complexa relação da Península Ibérica com a Europa, justamente no momento em que Portugal está entrando na União Europeia.
Tomemos também o seu livro mais polêmico, aquele que fez com que deixasse a Portugal carola mesmo depois da Revolução dos Cravos: O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Reprodução
Capas de livros de José Saramago
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O ateu convicto transforma as passagens bíblicas em matéria literária e política, em que são questionados dogmas católicos, como a virgindade de Maria, e valorizados modos de vida comunitários, em oposição ao modo de vida capitalista. Provocou, assim, a ira de cristãos, mas também daqueles que fazem sua profissão de fé no capitalismo mais ortodoxo.
Evangelho, por outro lado, segue uma tradição de fazer da Bíblia, um livro popular por excelência, fonte de criação literária crítica, uma vertente que tem seu ponto literário mais alto na saga dedicada a José e seus irmãos, de Thomas Mann.
Saramago até podia se “repetir” na forma – que, nunca é demais lembrar, inventou –, mas se manteve até o fim da vida buscando criar em torno de novos temas, mostrando uma vitalidade incomum para um escritor de quase 90 anos.
*Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista e diretor de redação do site Opera Mundi
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