Depois que a realidade fabricada tornou-se o modelo por excelência dos novos programas de televisão, a rede internacional de produtoras invadiu, sem constrangimento, o espaço privado.
Superbabás nos ensinam a cuidar dos filhos; estilistas fazem cara de muxoxo para as roupas de mulheres que querem ficar 30 anos mais jovens; gays espertinhos ajudam o hétero casca-grossa a encontrar um estilo mais “apropriado”.
Há ainda o pessoal que invade sua casa, muda a decoração, vende suas bugigangas a preço de banana no jardim. Os objetos que ninguém quer tomam o providencial rumo de uma instituição de caridade, e brinquedos antigos, móveis descascados, tênis com chulé de adolescente e outros objetos sem valor de troca e/ou de uso sobem no rabecão do amor ao próximo desconhecido. Um jeito simpático, mas nada discreto, de enterrar a culpa pelo consumo desmedido ao mesmo tempo em que se esvaziam armários para a chegada de mais tranqueiras de plástico.
Nessa invasão do mundo privado, claro, a TV meteu seu pé na cozinha. A receita é velha, mas foi adaptada ao gosto contemporâneo. Tia Palmirinha, com suas tortas, é ridicularizada pelos moderninhos, ou tratada como um ingênuo produto da cultura de massas, uma decadência do modelo Ofélia Anunciato ou, mais precisamente, do modelo Julia Child, a personagem que deu origem à história do filme Julia e Julia.
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Julia e Ofélia (tiro Ana Maria Braga da conversa porque ela é pós-moderna demais para a discussão, ela é tudo e não é nada ao mesmo tempo) exibiam a execução de suas receitas, suas fórmulas e seus toques que podiam ser copiados pelas mulheres no espaço da casa que, por excelência, elas dominavam.
Há novos modelos, como a suspirantemente sexy e nada adstringente Nigella Lawson. Mas a comida, agora, também é masculina, e neste texto são eles que contam. Porque, mais que cozinhar, os cozinheiros e chefs cumprem papéis especiais.
Peguemos os exemplos extremos: o francês Olivier Anquier e o escocês Gordon Ramsay, estrelas de programas na TV paga que ditam o gosto e a postura da classe média preocupada em ser também aquilo que come.
Olivier é cozinheiro; Ramsay é chef.
Olivier Anquier é simpático, a pede licença, faz uma comida do coração. Ramsay mostra, com seus “Kitchen Nightmares”, que há uma ordem no mundo e, se você quer se dar bem, tem de segui-la. Olivier toca a campainha e elogia a dona do fogão. Ramsay arromba a porta, humilha os funcionários, desce ao porão para encontrar baratas, ratos e moscas que os restaurantes ou conseguem evitar ou precisam esconder.
Gordon discute com cliente durante gravação de “Kitchen Nightmares” (em inglês)
O local aparente das viagens e dos pratos de Olivier Anquier (e de seu semelhante inglês, Jamie Oliver) é a casa, a vila, a cidade pequena, o país de origem.
O espaço que Ramsay conquista é a fachada e a rua (uma casa especializada em comida indiana na Broadway nova-iorquina, por exemplo), o espaço público privatizado e internacionalizado do restaurante. Anquier conquista pela pessoalidade, pela proximidade, pela amizade, por ouvir. Ramsay domina por meio do planejamento, da sistematização, da violência verbal.
Anquier nos mostra como negociar, como ceder, como agradar. Seu sotaque francês completa a brincadeira e faz chegar ao lugar comum: é preciso falar a língua do outro. Por isso, para ele, vale mil vezes mais um elogio falso que duas críticas construtivas.
Trecho do programa “Diário do Olivier”, exibido pelo canal GNT
Ramsay, cara enrugada, falar grosso, andar rápido e objetivo, simboliza o poder. Os funcionários de cada um dos empreendimentos que reforma são os coadjuvantes do sucesso do chef, ou melhor, do chefe. Ramsay explica, em cada uma das suas intervenções, o que é preciso fazer para um restaurante ter sucesso: cardápio adequado ao gosto e à capacidade de pagamento do cliente, decoração planejada, ritmo de produção na cozinha e na entrega do prato. Os ingredientes, mostra ele, têm de ser frescos não só porque são mais saborosos, mas porque são mais baratos. A mais-valia, afinal, tem de ficar com o dono do negócio, não com o fabricante de batatas fritas!
Para quem não o obedece, o destino inelutável do fracasso.
A cozinha de Ramsay é, assim, a extensão da padaria de Anquier por outros meios. Mas ambos, com suas paneladas televisivas, nos ajudam a engolir “tudo isso que está aí”. Sem reclamar.
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