A inclusão de Carlos Lattuf, cartunista e colaborador deste Opera Mundi, onde publica regularmente suas charges, no “top ten” do antissemitismo mundial pelo Centro Simon Wiesenthal demonstra um lamentável e preocupante uso do conceito. Ao abusar do termo e retorcê-lo ao sabor de necessidades políticas imediatas, o Centro Simon Wiesenthal empobrece o debate sobre a Palestina e, ao mesmo tempo, corrói a credibilidade da justa luta contra o preconceito e a discriminação de que sofreram e sofrem os judeus.
Carlos Latuff/Opera Mundi
Seja na questão das terras indígenas no Brasil, seja em defesa da democracia no Egito, seja na condenação aos ataques de Israel contra Gaza, os cartuns de Latuff se pautam por uma corajosa crítica aos poderosos e uma defesa incondicional dos direitos das populações em situação de fragilidade.
A charge escolhida pelo Simon Wiesenthal para incluí-lo na lista dos dez mais antissemitas é suficiente para expor a inconsistência de uma acusação tão grave: nela, não há nenhuma menção ao judaísmo como religião ou aos judeus em particular. Trata-se de uma crítica explícita ao governante de Israel, que “torce” uma criança palestina para colher alguns votos. O argumento do Centro Simon Wiesenthal é que, “durante os recentes conflitos insuflados pelo Hamas contra o Estado judeu, o cartunista brasileiro difama Israel e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu por fazer aquilo que qualquer líder faria contra a matança dos ataques de foguetes contra populações civis”.
Ora, a charge fala por si. A imagem não ataca o Estado judeu, mas o seu principal dirigente. E critica justamente o fato de que os ataques de Israel promovem, do lado palestino, aquilo que diz querer evitar do lado israelense: a morte de inocentes. Mesmo o maior defensor da postura de Israel sabe que os números de mortes dos dois lados são desproporcionais, especialmente entre civis. E as mortes em Gaza não se limitam aos períodos dos ataques, elas se estendem depois deles, devido à destruição em larga escala da infraestrutura e da inviabilização econômica de todo um território, por meio de barreiras físicas e militares.
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Como termo de comparação, basta elencar a motivação que permitiu ao Simon Wiesenthal incluir as torcidas organizadas inglesas no quarto lugar da lista. Em partida contra o Tottenham Hotspur, time baseado numa vizinhança de forte presença judaica em Londres, os torcedores do West Ham United cantaram “Adolf Hitler está chegando” e “Amanhã vocês vão pra câmara de gás”.
Para que não haja dúvida: quem acompanha o trabalho de Latuff sabe que, se estivesse vivo setenta anos atrás, seria o próprio Hitler que estaria incomodado com suas charges denunciando o holocausto. E quinhentos anos atrás, a inquisição o trataria como um caso de judaísmo.
O antissionismo de Latuff não pode, portanto, ser confundido com antissemitismo. Ser adversário do governo de Israel (e mesmo do Estado de Israel, o que muitos judeus o são, à direita e à esquerda) não é o mesmo que ser contra os judeus e o judaísmo. A identidade entre sionismo e judaísmo é uma ideia equivocada, estimulada por lideranças como Netanyahu e seus aliados em instituições e veículos de comunicação.
Assim, é lamentável que lideranças e entidades judaicas não consigam identificar em seu trabalho a crítica dura, mas sincera e sem qualquer conotação racista, de abusos que inviabilizam um acordo de paz efetivo na Palestina.