No último domingo (14/12), a polícia turca prendeu 23 profissionais de mídia, acusados de fazerem parte de um complô político e religioso. Os presos são jornalistas, executivos e um roteirista de uma série de televisão, todos do jornal Zaman, o mais popular do país, e da rede de televisão Samanyolu. A íntegra da acusação é a de “formar, liderar e integrar uma organização armada terrorista”. Eles seriam partidários do clérigo muçulmano exilado Fethullah Gülen, que vive nos Estados Unidos. O presidente turco, Recep Erdogan, acusa Gülen, seu ex-aliado, de formar um aparato paralelo, angariando apoio na mídia e no Estado, com o objetivo de derrubar Erdogan do poder. A repercussão das prisões traz à tona dois aspectos da atual situação política europeia.
Em um olhar superficial, seria um evento decorrente de uma disputa de poder interna. O prestígio de Recep Erdogan é questionado em escala internacional desde, no mínimo, os protestos iniciados em maio de 2013, na Praça Taksim de Istanbul. Erdogan era, então, primeiro-ministro e, apenas na capital, cerca de sete milhões de pessoas foram às ruas para protestar contra o governo, o que incluía denúncias de autoritarismo. Dentro da Turquia, os protestos foram alvo de censura e desinformação midiática; diversos grupos de mídia, apoiando o governo, realizaram coberturas enviesadas dos eventos. Pinguins tornaram-se um dos símbolos dos protestos, satirizando o fato da CNN Turquia exibir documentários sobre as aves em detrimento de sua cobertura jornalística. Erdogan está habituado ao apoio da imprensa e o tem como pilar de seus governos.
Agência Efe
Erdogan tem enfrentado uma nova série de protestos devido à prisão de diversos jornalistas
A disputa de poder interno e o fato de Erdogan querer garantir seu sustentáculo na mídia turca explicam as prisões dos jornalistas, mas e suas consequências? A imediata foi a condenação, por parte da União Europeia, de um ato chamado de autoritário e que fere a liberdade de expressão e de imprensa. Já no domingo, Federica Mogherini, Alta Representante da União Europeia para Relações Exteriores, também afirmou que as prisões vão contra “os princípios da Europa”. Mogherini havia visitado a Turquia apenas uma semana antes das prisões, objetivando retomar conversas sobre o processo de entrada da Turquia na União Europeia, iniciado em 2005, após candidatura feita em 1999.
O presidente turco respondeu que a União Europeia deveria “cuidar de seus problemas”. Dois dias depois da declaração da italiana, em 16 de dezembro, ministros de Relações Exteriores de diversos países europeus endureceram ainda mais o discurso e deixaram claro que circunstâncias como as prisões dos jornalistas são um grande retrocesso no processo de admissão turco. O discurso agressivo por parte da União Europeia em relação ao autoritarismo do governo turco e a resposta do presidente da Turquia trazem consigo mais que apenas um capítulo na disputa de poder turca. Demonstram dois aspectos da atual situação política europeia. O primeiro deles é a contradição. A União Europeia cobra liberdade de expressão e condena a censura, ao mesmo tempo em que sustenta cenários internos semelhantes.
O caso mais recente é o da Espanha. No começo deste mês, o país aprovou, como noticiado em Opera Mundi, a Lei de Segurança Cidadã (Ley de Seguridad Ciudadana), que criminaliza manifestações populares, proíbe a documentação das ações policiais e permite a expulsão sumária de imigrantes sem documentação nos enclaves espanhóis da África. A lei foi alvo de protestos da oposição política espanhola, que a chamou de “lei da mordaça”.
NULL
NULL
Outro país europeu com recentes desdobramentos no tema é o Reino Unido. O país esteve diretamente implicado no vazamento de informações por Edward Snowden sobre vigilância em massa e violação de privacidade na internet. A reação do governo foi aprovar, em três dias, o Ato de retenção de dados e poderes investigativos (Data Retention and Investigatory Powers Act 2014), mesmo sob protestos da Corte de Justiça da União Europeia.
Essa distensão é apenas mais uma dentre as diversas crises recentes entre Reino Unido e União Europeia. O Reino Unido possui quatro exceções dentro do corpo de leis e tratados da UE, é o país com mais opt-outs. O euroceticismo dentro do Reino Unido chegou aos maiores índices de opinião popular, com pesquisas indicando que 41% dos entrevistados defendem que o Reino Unido saia da UE, com 18% de indecisos. A situação chegou ao ponto de David Cameron, primeiro-ministro, anunciar um projeto de referendo popular para 2017, que decidirá se o Reino Unido permanece na união. E esse é o segundo aspecto da política europeia que está relacionado aos jornalistas turcos presos. O Reino Unido é, historicamente, o maior aliado e defensor da entrada turca na União Europeia. A atual distância britânica da UE enfraquece o processo de admissão turco, consequentemente, enfraquece a posição europeia em repreender a Turquia.
Wikicommons
Presidente turco tem perdido apoio entre seus aliados internacionais para ingressar na UE
Em julho de 2010, Cameron visitou oficialmente a Turquia. Em seu discurso, afirmou: “Aqui está um país que não é europeu, sua História, sua geografia, sua economia (…). Esse é um país que não pode (…) ser um membro”. E prosseguiu: “Isso pode soar como alguns europeus descrevendo a Turquia. Na verdade, era o general de Gaulle descrevendo o Reino Unido, meu país”. A mensagem era clara: o Reino Unido é solidário ao processo de admissão turco por ter enfrentado situação semelhante quando de sua admissão, em 1973, quinze anos após a formação da Comunidade Europeia. A candidatura da Turquia como futuro membro da União Europeia sempre foi um processo delicado, por diversas razões. Com seu principal aliado desinteressado na UE como um todo, torna-se projeto quase impossível.
Temos então um presidente de um país que está no meio de uma disputa interna de poder e vê seu prestígio e legitimidade minguarem. A reação autoritária de Erdogan é criticada e condenada pela União Europeia, entretanto, a posição europeia permite, no mínimo, um debate sobre sua aparente contradição. Além da contradição, a Turquia se enxerga cada vez mais isolada em relação aos países europeus. É o país da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que mais arca com as consequências dos conflitos na Síria e no Iraque, apesar de repetidos pedidos de maior apoio. Finalmente, a Turquia percebe seu projeto de ascensão europeia cada vez mais distante, especialmente pelo desinteresse de seu principal aliado no processo. A soma de disputa interna com isolamento externo leva Erdogan à sua própria resposta: para ele, cada um que cuide de seus problemas.
(*) Filipe Figueiredo é redator do Xadrez Verbal