O que deveria ser um momento de memória do maior conflito armado da história moderna e a celebração de seu fim tornou-se, novamente, um evento de uso político. Todo 9 de maio, em Moscou e em outras cidades russas, realiza-se a Parada da Vitória, que celebra a rendição das Forças Armadas da Alemanha nazista. O evento de 2015 tem ainda mais força simbólica, por ser o aniversário de 70 anos do final da guerra na Europa. Em um período de crise internacional, o que poderia ser um evento de memória coletiva e reaproximação foi esvaziado, intencionalmente, tornando-se instrumento de censura ou de ranger de dentes.
A Parada da Vitória é uma tradição russa e, anteriormente, uma tradição soviética. Dado o tamanho do impacto da guerra na sociedade russa, com um número de mortos entre 22 e 28 milhões de pessoas, militares e civis, era uma data cívica das mais importantes. Nos anos da Guerra Fria, aproveitavam-se os holofotes e a grandiosidade da data para demonstração de força: além da grande parada militar, a estreia pública de novos armamentos e equipamentos, com a presença de aliados da ocasião. Uso geopolítico da memória coletiva digno do período de conflito.
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A situação começou a mudar nos anos finais da União Soviética. Na década de 1990, líderes alemães passaram a ser convidados, como forma de simbolizar a reconciliação entre os povos. A criação de um laço político e afetivo que contribuiu para os laços econômicos entre os países, que remontam ao século XIX. Com a dissolução da União Soviética, para demonstrar que foi uma vitória soviética, não russa, líderes dos antigos membros da URSS também era convidados. A Parada da Vitória mudou; de demonstração de força, ganha contornos de uma política russa de boa vizinhança.
O ápice dessa nova caracterização, como um evento de memória coletiva e reaproximação, foi o evento de 65 anos do final da guerra, em 2010. Líderes de China, Israel e países ex-soviéticos, incluindo Letônia e Estônia, de relações conturbadas com a Rússia, assim como a Polônia, cujo presidente interino estava presente, além de Angela Merkel e de representantes de alto escalão de Reino Unido, EUA e outros países. Dentre as mais de 11 mil tropas desfilando, pela primeira vez participam tropas estrangeiras não soviéticas; algo inimaginável na Guerra Fria, tropas aliadas de EUA, França e Reino Unido desfilam em Moscou, além de tropas polonesas.
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Em 2015, novo cenário
O elemento de demonstração de força ainda era presente, com a primeira aparição pública dos novos lançadores de mísseis intercontinentais Topol-M, mas, nesse momento, é um elemento menor na equação. Hoje, cinco anos depois, com o conflito na Ucrânia e a anexação da Crimeia como ente federativo russo, os convites russos já não são bem recebidos. Vinte e seis países oficialmente recusaram convites, seja para participar da parada militar, seja para a presença de seus líderes, dentre eles EUA, Israel e Reino Unido, além de sete países ex-soviéticos, incluindo a Ucrânia. Alguns deram motivos de agenda interna, mas o desconforto nas relações russas é evidente.
Russos se reuniram para ver desfile
O caso mais ostensivo é o de Angela Merkel. A Alemanha é presença constante na parada, pelos motivos citados. Helmut Kohl e Gerhard Schröder, seus antecessores, também cumpriram esse papel, assim como ela em ocasiões anteriores. Merkel irá para Moscou no dia seguinte, quando participará de uma cerimônia em que colocará uma coroa de flores na Chama Eterna do Túmulo do Soldado Desconhecido. Ela estará com Vladimir Putin, mas o caráter mais solene da cerimônia certamente arrefecerá qualquer tipo de questionamento sobre as relações entre os países, diminuindo o elemento de um contato entre dois Estados em distensão.
Os líderes confirmados de maior impacto são os líderes de Sérvia, China e Índia, além do presidente egípcio, general Abdel Fattah al Sisi., em meio à negociação de compra bilionária de armamento russo por parte do Egito. Dentre as tropas estrangeiras presentes, além de seis contingentes de países ex-soviéticos, estão soldados da Sérvia, Mongólia, China e Índia; os quatro países participaram da Segunda Guerra Mundial, mas apenas os sérvios também lutaram no front oriental. Dilma Rousseff também foi convidada, mas, alegando agenda interna, será representada pelo Ministro da Defesa, Jacques Wagner. Com o esvaziamento da representação internacional, a Parada da Vitória ganha novos ares de demonstração de força.
Dez veículos militares russos farão suas estreias públicas oficiais, um número digno do auge da Guerra Fria. Dentre os estreantes estão o novo lançador de mísseis intercontinentais móvel RS-24 e duas variantes do novo chassi Armata, incluindo o T-14, o novo tanque de guerra russo. Se o chamado Ocidente censura Putin publicamente, evitando a cerimônia, a resposta é escalada e na mesma moeda, com demonstração de força militar renovada. A crise da imagem russa, entretanto, vai além dos altos escalões da política internacional e de parte da imprensa especializada. Em recente pesquisa com 3 mil pessoas igualmente divididas entre Reino Unido, França e Alemanha, apenas 13% colocaram a União Soviética como maior responsável pela vitória na guerra.
Extensas discussões historiográficas deixadas de lado, o dado mostra como a imagem russa não é afetada apenas pela atual crise. É resultado de décadas de influência cultural da Guerra Fria, com a vilanização de russos e soviéticos, além de ufanismo do papel de países da Otan (aliança militar ocidental), especialmente dos EUA, em materiais como filmes e televisão. Repete-se: o foco é deixar claro que a imagem russa na Europa está arranhada, também pelos acontecimentos atuais. A Parada da Vitória relembrando 70 anos do conflito poderia ser ótima ocasião para reaproximações, como já foi, celebrando a memória de milhões de mortos, de diversas nacionalidades e etnias. Ao contrário, foi esvaziada, e, assim como no passado, a Parada da Vitória servirá para demonstrações de força e manter a tensão.
(*) Filipe Figueiredo é redator do Xadrez Verbal