Esta madrugada, para muitos no Reino Unido, foi um pesadelo. Bandeiras espalhadas pelas casas e gritos de alegria de vizinhos a cada voto para sair. Não sou europeia, mas a cada grito eu confirmava que Londres é uma ilha. Nestes últimos anos, tive a oportunidade de viver o que os ingleses chamam com orgulho de ser a Inglaterra: o interior, especialmente ao norte. A cada grito me senti expulsa. A cada grito eu entendia que este não é o meu lugar. Era o grito engasgado de muitas famílias inglesas que conheci fora da outra ilha — chamada Oxford.
Eu passei a madrugada acompanhando todos os debates em cada canto deste país. Nem vou citar aqui a questão da xenofobia — que é o tema mais discutido e mais óbvio da questão. A xenofobia é apenas um dos sintomas de uma grave crise que começou com o fim da classe trabalhadora (e sua capacidade de articulação) na Inglaterra desde os tempos de Thatcher.
Agência Efe
Manifestantes contrários à “Brexit” se reúnem em frente à residência do primeiro-ministro David Cameron em Londres
Quem vive no Reino Unido, é de esquerda e acredita na democracia teve que se deparar com questões muito intrigantes nos últimos tempos. Eu vi os maiores democratas que conheço comentando que “como dar uma decisão tão importante para o povo ignorante?”. Este é o ponto central para todos aqueles que acreditam na democracia direta. Então não se pode dar ao povo a decisão porque o povo é ignorante? Quando que pode se dar ao povo então a capacidade de decidir? Quando houver debates intelectuais? Quando isso vai acontecer? Quando vai existir esse dia em que votaremos racionalmente e não com emoção? Quando teremos debatido o suficiente para escolher o rumo de um país? Eu tive que aguentar a noite vendo políticos do Labour dizendo que o povo era ignorante. Que paradoxo.
Foram semanas de movimentação. Brigas entre amigos e familiares — nada que nós brasileiros não estejamos acostumados. Foi uma decisão emocional — como sempre é — baseada na raiva que assolou a classe trabalhadora inglesa.
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Muitos gritaram “devolver o país aos ingleses”. É claro que a xenofobia é uma variável importante. Mas olhar só para ela é um erro imenso. O maior problema é a classe trabalhadora que perdeu seu estado de bem-estar social. Aquela fase que o encanador tinha uma casa muito parecida com a do banqueiro acabou. Tudo acabou.
Mas o que acabou principalmente é a consciência de classe (sem levar muito a sério o conceito aqui, okay?) da classe trabalhadora, especialmente do norte do país que empobreceu. O desmonte da identidade de classe começou com Thatcher, que agiu no âmago da troca de subjetividades e do orgulho de classe. Como diz Jones, tampouco penso que amar ser trabalhador de uma mina de ferro seja o ideal, mas certamente a identidade negada da classe trabalhadora resulta não apenas na xenofobia, mas no ódio irrestrito à classe política e à própria classe trabalhadora. “O problema são os pobres” — gritava uma trabalhadora da Universidade que ganha um salário mínimo e referia-se aos camponses.
Os trabalhadores mostravam rejeição a toda forma política “Nós queremos chutar para fora todos os políticos” – mas, no fim das contas, chutou-se contra si mesmo, pois quem vai pagar a conta da recessão certamente é a classe trabalhadora.
Todas as comunidades pobres que votaram para sair anunciaram que votaram porque não aguentavam mais a austeridade — o que é uma loucura tremenda, mas que temos que ouvir e entender.
Temos, como no Brasil (pedindo desculpa por esta comparação rasa e anacrônica) uma massa perdida e revoltada e uma esquerda – o labor – incapaz de reorganizar a classe trabalhadora. Uma massa, como diria Thompson, cuja economia moral é defensiva. Ela age para não perder o que tem. É o que aconteceu aqui esta madrugada. As pessoas votavam — cegamente — pela sua vida empobrecida, mas movida pelo sentimento de ódio a tudo, muito bem aproveitado pela extrema-direita, que agora se junta ao coro do “odiamos a política tradicional”.
Como sempre são os mais fracos que vão pagar pelo desmonte do Estado britânico. Não tenho esperanças numa eleição de Corbyn. A classe trabalhadora desde Thatcher odeia a si própria, assim como odeia o Outro.
Uma tristeza.
*Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Colunista da revista Carta Capital, é também professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford