As eleições presidenciais nos Estados Unidos desta terça-feira (08/11), se dão num contexto de marcha acelerada da crise de hegemonia em que o país se encontra desde 2007, e que se manifesta num conjunto de indicadores econômicos, sociais e políticos que podemos resumir da seguinte forma:
a) Baixíssimos níveis de crescimento econômico per capita que os situam fora da média dos períodos expansivos dos ciclos longos (Kondratievs) e muito mais próximos aos seus períodos recessivos. O provável fim, nos próximos anos, da expansão iniciada em 1994 indica que a economia estadunidense provavelmente será incapaz de retomar a dinâmica expansiva que exibiu entre 1994-2006, quando cresceu em 2,2% ao ano, taxa inferior, mas próxima à média da economia mundial, de 2,6% a.a, impulsionada pela China;
b) Forte ampliação da desigualdade, em particular a partir de 1979, medida pelo crescimento da participação dos 1% e 10% mais ricos no PIB, que se ampliou de 9% a 21% e de 33,5% a 47,9%, respectivamente, entre 1970-2010; pela relação dos salários entre gestores e empregados que saltou de 41/1 a 335/1 entre 1980-2015; ou pela população abaixo da linha de pobreza, cuja queda é interrompida nos anos 1970 para se elevar de 11,7% em 1979 para 15% em 2012 ou 13,5% em 2015;
c) Financeirização e parasitismo crescente da economia, manifesta no aumento da dívida pública, que saltou de 33% para 100% entre 1979-2015, cujo controle estrangeiro e chinês é crescente; no aumento da participação das corporações financeiras na massa total de lucros domésticos, que saltou de 20% para 36% entre 1979-2010; e no aumento da massa de lucros das corporações estadunidenses geradas por filiais estrangeiras que se elevou de 5% em 1967 para 21,5% em 2010
d) Na crise institucional do bipartidarismo, que se manifesta na parcela crescente da população estadunidense que acredita ser necessária a criação de um terceiro grande partido, na perda secular de confiança nos poderes executivo, legislativo e na Suprema Corte e, nesta eleição, no surgimento de duas candidaturas que desafiaram o establisment dos partidos democratas e republicanos. De um lado, Bernie Sanders que questiona o fracasso das políticas sociais para reduzir a desigualdade e o compromisso de setores chaves do partido Democrata com os grandes monopólios financeiros e empresariais; e de outro, Donald Trump, cuja autonomia frente à institucionalidade partidária se reflete na sua pregação populista de direita, no seu poder econômico pessoal, e no seu histórico de filiação partidária republicana e democrata, sempre na contramão da coloração partidária do governo eleito, desde o período Clinton.
Neste contexto, como entender os projetos que se confrontam nas urnas de Hillary Clinton e Donald Trump e que implicações possuem para a balança de poder mundial e as relações de poder nos Estados Unidos e na América Latina? Para respondermos esta pergunta é necessário entender quais os padrões democratas e republicanos de políticas públicas desde a ofensiva neoliberal nos anos 1980.
Agência Efe
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Com a ofensiva neoliberal e a financeirização da economia que esta impôs desde os anos 1980, alterou-se a relação de democratas e republicanos com o complexo industrial-militar e a guerra, constituindo-se em linhas gerais dois grandes padrões de economia política, suscetíveis a certas variações internas em função da conjunturas: republicanos elevam drasticamente os gastos militares, estabelecem uma política externa agressiva e cada vez mais unilateral, cortam impostos para os mais ricos e implementam uma política tributária regressiva, aumentam significativamente as taxas de juros, o desemprego, os déficits públicos e a dívida pública, responsabilizando os gastos sociais, contra os quais investem, pelos desequilíbrios fiscais e orçamentários. Democratas optam pelo welfare e ampliam gastos sociais, buscam o equilíbrio orçamentário e o controle da expansão de uma dívida pública descolada da ampliação da demanda efetiva e voltada para a fabricação de capital fictício, cortando gastos militares, reduzindo as taxas de juros, implementando uma política externa multilateral, centrada na organização de alianças estratégicas para compartilhar os custos da segurança internacional.
Assim, durante o governo Reagan [1981-1989], os gastos militares, em valores deflacionados, saltaram em 51%, se elevando em 5,3% ao ano, e durante o governo Bush pai [1989-1993], que fez a Guerra do Golfo com recursos árabes, se manteve em alto patamar, 31% superior ao de 1980, quando se elegeu Reagan. Clinton [1993-2001], por sua vez, cortou os gastos militares devolvendo-os praticamente aos mesmos patamares pré-Reagan, quando alcançaram US$ 384 bilhões em 1999 contra US$ 378 bilhões de 1980, ainda que os tenha elevado a partir da Guerra do Kosovo para US$ 398 bilhões em 2000. O governo de Bush Filho [2001-2009] elevou os gastos militares ainda mais que Reagan, aumentando-os em 67% em seu mandato, levando-os a US$ 666 bilhões em 2008, uma expansão de 6,6% ao ano. O governo Obama [2009 – atual] apesar de continuar aumentando-os até 2010, quando atingiram o recorde US$ 740 bilhões, patamar 11% superior ao maior valor do governo Bush, reduziu-os desde então, situando-os em 613 bilhões em 2014.
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Da mesma forma, os déficits públicos foram impulsionados pelos governos republicanos que, em dólares deflacionados, os incrementaram de US$ 186 bilhões em 1980 a US$ 428 bilhões em 1992, nos governos Reagan e Bush Pai, é de um superávit de US$ 296 bilhões, deixado pelo governo Clinton, a um déficit US$ 1 trilhão 412 bilhões, legado por Bush Filho para Obama com a crise econômica que se armou em seu governo e eclodiu em 2009. Os governos democratas diferentemente produziram superávits, caso do governo Clinton, ou reduziram déficits, caso de Obama, que os restringiu a US$ 438 bilhões em 2015. Para isso, foi fundamental a combinação que praticaram entre subordinação da política monetária à política expansionista — situando as taxas de juros reais abaixo das taxas de crescimento do PIB — e política tributária progressiva. Inversamente, os governos republicanos ou situaram as taxas de juros reais acima das taxas de crescimento do PIB e combinaram esta política monetária com uma política tributária regressiva, casos dos governos Reagan e Bush pai, ou subordinaram a política monetária à política expansiva, como no governo Bush Filho, ampliaram de forma extrema os gastos militares e as isenções fiscais às grandes empresas, gerando déficits orçamentários gigantescos que impulsionaram a dívida pública e o setor financeiro.
Ao vivo com Opera Mundi – entenda o processo eleitoral nos Estados Unidos:
Por isso, os governos republicanos foram os grandes responsáveis pelo aumento da dívida pública, que saltou nos governos Reagan e Bush Pai de 32% a 62% do PIB, reduzindo-se no governo Clinton para 55% do PIB, que planejava zerá-la em 13 anos com superávits fiscais e crescimento econômico, conforme o último informe do The Economic Report of The President que produz. O governo Bush Filho a elevou para 67,7% e teve grande responsabilidade para que atingisse 100% do PIB no governo Obama, ao legar para este uma crise econômica que gerou déficits fiscais gigantescos de 9,8% em 2009, 8,7% em 2010 e 8,5% em 2011.
O que esperar de Trump e Hillary diante destes padrões?
Trump representa a resposta mais próxima que Samuel Huntington buscava ao que chamou de ameaças ao poder internacional e identidade estadunidenses em seu livro Who are we? The Challenges in America´s national identity (2004). Tal como Huntington, Trump vê as ameaças ao poder estadunidense no século XXI em certos riscos trazidos pela globalização, que apesar de inevitável poderia ter seus efeitos nocivos controlados, desde que se produzisse uma resposta à altura a eles. Os principais efeitos nocivos trazidos pela globalização para o poder estadunidense são, segundo Huntington, em ordem crescente a desnacionalização da elite empresarial estadunidense, o multiculturalismo, a migração latina, especialmente a mexicana, o nacionalismo chinês e o islamismo militante. Para o autor, a resposta a estes desafios deveria implicar uma mescla de dois elementos: de um lado a repressão contra imigrantes e os movimentos identitários e de ação afirmativa, que colocariam em risco o protagonismo da cultura branca, protestante e anglo-saxã fundadora dos Estados Unidos, somada ao combate sem tréguas ao islamismo militante e ao nacionalismo chinês, vistos como inimigos externos capazes de promover uma cruzada de unidade nacional. Esta resposta violenta deveria, contudo, se mesclar ao protagonismo cultural da cruzada de unidade nacional, que se basearia não apenas na defesa de valores políticos estadunidenses, como liberdade e democracia, mas do cristianismo conservador evangélico, do qual teriam partido, para difundir às culturas a eles estranhas seus principais fundamentos, assimilando-as ao poder estadunidense, e minimizando a necessidade de exercício da violência.
O ódio aberto mobilizado por Trump contra imigrantes mexicanos e muçulmanos, mulheres e movimentos identitários; sua hostilidade explícita ao Papa; seu posicionamento anti-establisment, associado às críticas à desnacionalização da economia estadunidense promovida por tratados de liberalização comercial; e a reivindicação messiânica e carismática de sua individualidade e formação religiosa presbiteriana expressam exatamente a cruzada populista conservadora de setores do grande capital estadunidense, baseada no protagonismo da cultura branca, machista, belicosa, anglo-saxã e evangélica contra as supostas ameaças da globalização. A originalidade de Trump é acrescentar este ingrediente em doses inéditas ao legado republicano que se acumula desde Reagan – do qual é um admirador confesso -, e de que discrepa apenas no que tange a liberalização comercial, que não tem a capacidade de reverter. Tal legado se baseia como vimos no warfare, na reforma tributária regressiva e na financeirização da economia, que estão, todavia, entre os verdadeiros elementos chaves da decadência estadunidense no mundo.
A demagogia descarada do projeto de Trump e sua incapacidade para enfrentar os grandes problemas estruturais da economia estadunidense que minarão sua popularidade, na eventualidade da sua eleição, o levarão provavelmente a apelar ao mecanismo do inimigo externo/interno como forma de reforçar sua popularidade, esvaziar o centro, e criar um ambiente de excepcionalidade permanente através do qual possa impor sua personalidade sobre a estrutura institucional dos poderes do Estado norte-americano: as guerras e episódios similares ao 11 de setembro são os instrumentos ideais para isso.
A alternativa Trump representaria ainda provavelmente o fim das políticas democratas de estímulo à economia através de taxas de juros reais negativas, impactando fortemente a América Latina, assim como a sua ameaça de taxar remessas de imigrantes ou exportações mexicanas, poderia levar economias da região a forte crise no balanço de pagamentos e ao colapso. O unilateralismo interno/externo de Trump poderia abreviar o que resta da hegemonia estadunidense, lançando o mundo perigosamente no caos sistêmico, teorizado por Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e Beverly Silver. Não é por outra razão que líderes internacionais como Putin e intelectuais de esquerda, como Zizek, vejam com certa simpatia sua vitória, na esperança de que os Estados Unidos percam a capacidade de coordenação internacional de que dispõem e que se abram fraturas na coalizão liberal mundial que lidera. Todavia, esta é uma aposta extremamente arriscada, seja porque a dominação imperial pode suceder à hegemonia, seja porque ameaças disruptivas do caos sistêmico podem fugir à capacidade de controle das forças que impulsionam uma geopolítica mundial alternativa, mais ampla, igualitária e democrática.
A alternativa Hillary se desenvolve pressionada por um esvaziamento progressivo do centro político nos Estados Unidos e por um movimento popular que toma o partido democrata, exigindo políticas contra o brutal aumento da desigualdade nos Estados Unidos, o que implicaria em impulsionar um programa de gastos públicos sociais muito mais amplos que o New Deal, de Roosevelt, e a Grande Sociedade, de Lyndon Johnson. O comprometimento do grande capital estadunidense com a financeirização e sua aversão ao pleno emprego prolongado tornam muito improvável que esta alternativa se estabeleça a partir de um quadro tão oligárquico do Partido Democrata, como Hillary, e sem grandes mobilizações populares. O mais provável é que um eventual governo Hillary continue a liderar uma coalizão liberal acossada pelo esvaziamento do centro político em direção à direita e à esquerda e que promova uma alternativa de imperialismo mais suave que Trump no plano mundial, dentro da agenda atlantista de cooperação internacional assimétrica e liberal, defendida por autores como Joseph Nye e Robert Keohanne. Tal imperialismo liberal, apesar dos protestos de setores do Partido Democrata, representados por Sanders, continuará a desestabilizar os governos nacionais-populares no mundo que veem como grande ameaça ao poder estadunidense sobre os suprimentos estratégicos, a classe trabalhadora e o Estado dos países periféricos e latino-americanos.
(*) Carlos Eduardo Martins é professor do PEPI/UFRJ e autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011), Boitempo