Vivemos tempos difíceis. A ascensão de uma extrema direita antiliberal com base de massas é fenômeno de alcance planetário. A eleição de Rodrigo Duterte à presidência das Filipinas em maio passado, comparando-se a Hitler e prometendo exterminar três milhões de viciados em drogas, abriu o cortejo de resultados eleitorais que expressam que algo se move na direção errada no planeta. O fenômeno que dá liga entre esse resultado eleitoral nas Filipinas e as vitórias da Brexit no Reino Unido e de Donald Trump nos EUA é o mesmo. Isto não significa que os atores possam ser comparados. Nada nos autoriza a comparar quem quer que seja a Rodrigo Duterte, que entre outros despropósitos vem incitando “viciados” a matarem traficantes e a população a matar “viciados”. O traço em comum está no fato que todos estes resultados eleitorais são fruto do mesmo processo econômico e político.
A reestruturação produtiva e a globalização
A Segunda Revolução Industrial está morta. No seu lugar, uma enorme reestruturação produtiva está em curso, com o avanço da robotização eliminando postos de trabalho e o deslocamento das plantas industriais intensivas em consumo de materiais, energia e mão de obra para os países da periferia do mundo, principalmente para a Ásia. Este processo produz vitoriosos e derrotados. Produziu ganhos significativos de renda em países periféricos, em particular na Ásia, mas também na África e na América Latina, mas aumentou a concentração de renda dentro de cada país. O rebaixamento dos custos de produção industrial decorrentes da robotização e dos menores custos salariais na Ásia produziu um enorme barateamento dos custos de bens duráveis, viabilizando o acesso destes produtos a milhões de trabalhadores pelo mundo afora. Mas deixaram atrás de si um rastro de destruição de empregos industriais em Europa, EUA e regiões industrializadas do Brasil.
Agência Efe
Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, construiu um inimigo de fácil identificação: traficantes e usuários de drogas
O deslocamento do emprego para o setor de serviços significou um aumento de empregos bem remunerados no setor financeiro e tecnológico para uma parte menor da população e um aumento de empregos de baixa qualificação no setor de comércio e serviços de baixa intensidade tecnológica para a maior parte da população. Os primeiros viram sua renda subir acima da média, sua cesta de consumo de industrializados baixar de custo e votaram contra a Brexit e por Hilary Clinton. Os segundos – a maioria – viam sua renda cair em relação à média, mas também em relação ao patamar anterior, e votaram pela Brexit e por Donald Trump. Em comum com o filipino Duterte, os vitoriosos destes processos eleitorais construíram um “inimigo” de fácil identificação: para Duterte, os “viciados”; para os defensores da Brexit, a imigração e a União Europeia; para Trump, a imigração e a China. É sempre bom lembrar que, nos anos 1930, para Hitler os culpados da crise eram os judeus.
Robert Paxton, em A Anatomia do Fascismo, cita frase de George Sorel de 1908 criticando Marx por não ter percebido que a história não avança inexoravelmente para o socialismo: “uma revolução alcançada em tempos de decadência pode tomar como ideal uma volta ao passado, ou até mesmo a conservação social”. As bases sociais tradicionais da esquerda nos cinturões industrializados de Europa, EUA e Brasil não mais existem. Porque estes cinturões industriais não mais existem no mínimo com a configuração que tinham 30 anos atrás. Fora do centro financeiro de Londres, prevaleceu a Brexit, com vitórias expressivas nas antigas áreas industriais. Hillary perdeu a eleição em Pensilvânia, Ohio, Michigan e Winscosin, Estados industriais decadentes, e o PT perdeu as eleições na região do ABC paulista. Não foi uma derrota conjuntural, embora a conjuntura tenha tido seu peso; é uma nova configuração política que chegou para ficar.
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O dilema da esquerda
A esquerda, tal como aprendemos a conhecê-la, construiu seus aparatos políticos, partidos e sindicatos, a partir da segunda revolução industrial, onde expressivas concentrações operárias formaram a sua base social por excelência. Para o marxismo, classe social se define por uma mesma forma de inserção no processo produtivo, uma relativa igualdade de acesso à renda e ao poder, portanto a formação de consciência de si mesma. Estas condições estavam dadas nas velhas plantas industriais, com milhares de operários organizados em atividades semelhantes, com salários semelhantes entre si e enorme concentração espacial.
A globalização e a reestruturação produtiva acabaram com estas condições. Nas plantas fabris sobreviventes dos velhos cinturões industriais trabalham muito menos operários, com um sem numero de degraus e hierarquias entre eles e funções muito mais diversificadas, assim como patamares salariais distintos. A enorme maioria da força de trabalho foi deslocada para o setor de serviços, com formas distintas de inserção no processo produtivo, onde subsiste trabalho assalariado, mas cresce o trabalho terceirizado, a “pejotização” e o empreendedorismo precarizado. Formar consciência de classe nestas condições é muito mais difícil.
A perda progressiva das identidades de classe foi substituída pela ascensão de outras identidades fragmentadas em busca de representação política. Pela esquerda, a luta antirracista, a pauta LGBT, a luta feminista, a defesa de valores libertários. Pela direita, as identidades étnicas, religiosas, culturais, a defesa de valores punitivistas.
Se no século 20 a luta política se organizou no fundamental entorno de interesses de classe, neste início do século 21 são as identidades que prevalecem na disputa. Recolocar a centralidade da disputa política em termos de conflito de interesses de classe é condição fundamental para a esquerda recuperar a relevância com capacidade de disputar poder.
Isto não significa abandonar ou relativizar as lutas por direitos civis expressas nas pautas identitárias afeitas à esquerda, mas reconhecer a sua insuficiência para lastrear a construção de uma nova hegemonia política.
Por tudo o que expus nesse texto, não é tarefa fácil nem tenho a pretensão de mostrar o caminho da salvação. Entre a esquerda que segue com a certeza na frente e a historia na mão, eu fico com a sabedoria de Sócrates, expressa na frase “tudo o que sei é que nada sei”.
*José Luis Fevereiro é economista e membro do Diretório Nacional do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade)