Em artigo publicado nesta segunda-feira (20/02) no jornal português Público, a jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho comentou a polêmica em que o ministro da Cultura brasileiro, Roberto Freire (PPS-SP) se envolveu ao entregar o Prêmio Camões na última sexta (17/02) ao escritor Raduan Nassar. Para ela, Freire “sumirá da história, mas a obra do premiado ficará”.
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No evento, o autor de “Lavoura Arcaica” fez duras críticas ao golpe no Brasil e ao governo de Michel Temer, sendo rebatido por Freire, que brigou com a plateia presente e chegou a sugerir que Nassar devolvesse o prêmio, concedido por Lisboa e Brasília.
“Claro que o ministro sumirá da história e a obra do premiado fica, enquanto houver alguma forma de livro no planeta. Para os livros de Raduan Nassar é indiferente o que passou na sexta. Mas a nós, contemporâneos, importa, sim, que um membro do poder político abuse do cargo, confundindo, distorcendo e agredindo um criador como Raduan, protagonista único da cerimónia, que lhe devia merecer, no mínimo, silêncio. Não cabe ao ministro aprovar ou reprovar o discurso do premiado, não lhe cabe responder”, diz Alexandra.
“A cerimônia de entrega do Prêmio Camões, o maior da língua portuguesa, sexta-feira passada, em São Paulo, foi um retrato do que está em curso no Brasil, mas não só. Revelou a que ponto um ministro não distingue Estado e governo, confundindo-se a si mesmo com um prêmio. E como querer separar cultura e política leva a uma política sem cultura”, diz.
A escritora chama Freire de “megalômano” e diz que, para ele, “quem critica este governo [o de Michel Temer] dá mau exemplo” e que o prêmio é dado pelos governantes. “Em suma, não é de espantar que o megalómano ministro venha a dizer: o prêmio, fui eu”, diz.
Paulo Pinto/Fotos Públicas
Escritor Raduan Nassar recebeu Prêmio Camões na última sexta-feira (20/02)
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Alexandra lembra que Roberto Freire é a “segunda tentativa de ministro da Cultura” de Temer – o primeiro, Marcelo Calero, pediu demissão após, segundo ele, se recusar a interferir no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a pedido do então ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA) para liberar as obras de um edifício onde o correligionário de Temer tem um apartamento, em Salvador. “Seja por isso, seja porque Michel Temer & Cia receavam o que Raduan pudesse dizer, a entrega do Prémio Camões só aconteceu agora”, diz a escritora.
Veja o vídeo da entrega do prêmio e, abaixo, a íntegra do discurso de Nassar:
Excelentíssimo Senhor Embaixador de Portugal, Dr. Jorge Cabral.
Senhor Dr. Roberto Freire, Ministro da Cultura do governo em exercício.
Senhora Helena Severo, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
Professor Jorge Schwartz, Diretor do Museu Lasar Segall.
Saudações a todos os convidados.
Tive dificuldade para entender o Prêmio Camões, ainda que concedido pelo voto unânime do júri. De todo modo, uma honraria a um brasileiro ter sido contemplado no berço de nossa língua.
Estive em Portugal em 1976, fascinado pelo país, resplandecente desde a Revolução dos Cravos no ano anterior. Além de amigos portugueses, fui sempre carinhosamente acolhido pela imprensa, escritores e meios acadêmicos lusitanos.
Portanto, Sr. Embaixador, muito obrigado a Portugal.
Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil.
Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes.
Com curriculum mais amplo de truculência, Moraes propiciou também, por omissão, as tragédias nos presídios de Manaus e Roraima. Prima inclusive por uma incontinência verbal assustadora, de um partidarismo exacerbado, há vídeo, atestando a virulência da sua fala. E é esta figura exótica a indicada agora para o Supremo Tribunal Federal.
Os fatos mencionados configuram por extensão todo um governo repressor: contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim. Governo atrelado por sinal ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro.
Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal.
Prova da sustentação do governo em exercício aconteceu há três dias, quando o ministro Celso de Mello, com suas intervenções enfadonhas, acolheu o pleito de Moreira Franco. Citado 34 vezes numa única delação, o ministro Celso de Mello garantiu, com foro privilegiado, a blindagem ao alcunhado “Angorá”. E acrescentou um elogio superlativo a um de seus pares, o ministro Gilmar Mendes, por ter barrado Lula para a Casa Civil, no governo Dilma. Dois pesos e duas medidas.
É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções. Coerente com seu passado à época do regime militar, o mesmo Supremo propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado.
O golpe estava consumado!
Não há como ficar calado.
Obrigado.