Quando eu e a Maria, minha namorada na época, fomos alugar nosso apartamento, a corretora imobiliária de praxe nos perguntou qual era nossa ocupação, respondemos quase em uníssono: trabalhamos com samba, escrita e somos professoras. De imediato ela ficou surpresa e satisfeita com nosso pretenso currículo econômico – o que nos deixou também intuitivamente tranquilas por sermos aceitas naquele território que viria a ser o nosso lar.
Depois a corretora proferiu:
engraçado, você parece ser mais intelectual, professora e escritora, e ela parece ser mais do samba.
Ela era eu.
Maria e eu nos olhamos, uma vez mais, detectando a discriminação racial instaurada naquela situação absolutamente banal para toda e qualquer pessoa branca de classe médica habilitada a pagar um aluguel para ter uma morada pseudoprópria no centro da cidade de São Paulo.
Eu era a mulher do samba, porque sou mulata. Mas querem saber? Meu samba não é tão de raiz tradicional quanto pensam quando me olham na rua, sexualizada animalescamente pelo olhar machista e racista, infelizmente galvanizado pelo contraste das mulheres brancas e magras com as quais eu muitas vezes ando por minha classe – esse grupo social do qual faz parte minha ex-mulher, com quem tive uma linda história de amor ao longo de cinco anos, e que foi motivo para eu ser chamada de palmiteira por pessoas mais escuras que eu em alguns espaços de negritude da cidade.
Eu conheço o samba não pelas escolas de samba de São Paulo ou do Rio de Janeiro, mas por frequentar o Bar do Gilson em Belém do Pará, minha origem.
Mas minha mãe, preta escura de cabelos crespos que, depois de ter vivido como empregada doméstica e operária, exigia que eu fosse uma mulher de pensamento exacerbado para, talvez, quebrar com o contexto de estereotipia reservado a minha espécie mestiça – filha de pai branco.
Minha mãe me exigia um duplo padrão de experiência corporal e mental, de modo muitas vezes violento, porque imaginava que a condição miscigenada ainda poderia me trazer problemas quanto à inserção na atividade social, pública e privada, do mundo. Ela adorava o samba, mas uma filha sambista não a fazia feliz pelo estigma imposto pelo senso comum.
Pois sim, pessoas pretas estão sempre se salvando do senso comum porque ele nos é fatal.
Andar com minha ex-mulher na rua era um exercício antropológico de vivência racista. Eu era abordada compulsoriamente através de cantadas esdrúxulas enquanto ela era vista como uma mulher pura, princesa, corpo sagrado e feito para casar.
Mas a real é que no samba as coisas eram mais complexas. Nosso grupo, as Sambadas, sempre foi visto nos meios de ativismo negro como uma roda embranquecida porque eu e a Carol, violonista e compositora, dificilmente éramos lidas como mulheres negras. A Carol é nêgalora (vejam que eu posso falar isso, branco nenhum pode), da periferia de São Paulo, tem um black enorme e loiro, olhos claros, pele clara, mas jamais pode ser lida como caucasiana (inclusive, nem se quisesse). Eu sou essa indiazinha, cabelo liso herdado da avó laçada e civilizada em Marapanim, no interior do Pará, e a pele escura.
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Eu sou sambista, por isso sou intelectual: sobre Ivone Lara, Fabiana Cozza, César Menotti e a banalidade do racismo
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Mas não foi suficiente. E tudo bem que não fosse. Carol pouco se gasta com isso quando conversamos sobre colorismo – essa doença do branco, racista, que nos regulamenta pelo nível de melanina na pele e que muitas vezes também determina o olhar dos negros sobre nossas vivências.
Eu me gasto mais. Fico chateada, esbravejo nas redes sociais, discuto com as manas mais retintas, as mais claras também. Acho que por uma angústia de ver a história da minha mãe apagada nessa tentativa de embranquecimento da minha ancestralidade direta nada oportunista (porque não sou um caucasiano, leucodérmico, tentando usufruir de cotas raciais porque um dia o trisavô foi feitor e tinha a pele mezzo escura). Mas com a Carol eu aprendo demais. Ela tem uma leveza e um silêncio obstinado que não tem a ver com o gesto de calar que nos impuseram os dominadores, tem a ver – imagino – com uma compreensão muito paulatina e mergulhada do que significa nossa atuação como mulheres pretas claras na vida do samba e da cidade.
Quando a Fabiana Cozza foi vítima da acusação de embranquecer Ivone Lara minha primeira reação foi indignada. Porque a Fabiana faz um papel fundamental no mundo do samba de emancipação das mulheres. Para mim ela é, ao lado de Raquel Tobias, Roberta Oliveira, Teresa Cristina, Rose Calixto e Sarah Brandão, a maior intérprete de samba desse momento histórico. Numa geração posterior, a Maíra da Rosa, do Samba de Dandara, é a maior.
A Maíra, preta escura (que merda ter que ficar designando assim as pessoas, mas é importante sobretudo diante do assassinato de tantas Marielles, pretas, periféricas, de luta), foi a mana que me chegou um dia e disse que eu não tinha que me sentir pesarosa por ser mestiça e estar em espaços de negritude.
Eu me sentia culpada por ocupar um lugar que achava não ser o meu. Porque nenhum outro era. Porque eu não era clara o suficiente para ser lida como branca na universidade ou na esfera das empresas nas quais trabalhei, mas também de forma alguma me sentia integrada a um sistema de opressão racista, antiafricanista, que fizesse eu me perceber como negra pelas vias negativas mais materialmente violentas da pós-abolição.
Mas eu sou negra, esse é o ponto. Negritude em um país miscigenado diz respeito também ao indígena, ao amazônico, ao cigano, ao sertanejo, pois a questão visual impera – sem dúvida – mas não é a única a latejar nos processos de discriminação fenotípica e étnica nesse país.
Uma pessoa pobre nordestina pode ser a mais parda possível por conta de sua ascendência colonial holandesa, francesa e portuguesa, mas quando abre a boca no sudeste evidencia sua condição marginal na história brasileira. Os nordestinos carregam São Paulo e Rio de Janeiro nas costas e até hoje são interpretados como burros de carga desprovidos de inteligência e valor humano.
A escravidão açoitou os povos africanos e a história oficial brasileira não conta que os indígenas também foram submetidos a torturas físicas e psíquicas que os fizeram morrer retalhados nos fundos de suas redes e ao léu das esteiras sobre o pisador. Isso foi retórica do branco e nós acreditamos. E disputamos entre nós quem sofreu mais. Todos sofremos.
Na contemporaneidade pós-racial mal sucedida é óbvio que a marca está na cor da pele. Por isso é importante que Fabiana abra mão do papel de Ivone Lara, porque a indústria cultural – nas mãos da sociologia branca – nos usa como ferramenta para apagar pessoas retintas. Afinal, uma mulata é muito mais concebível do que uma mulher retinta no sistema do desejo midiático – ela JÁ é boa para o prazer sexual do opressor, mas nunca para ser sujeito de si. Notem que ainda estou no campo do erotismo, porque essa é a seara máxima de nossa atuação na vida social.
A gradação de melanina é um dos utensílios do racismo histórico naturalizados para nos botar uns contra os outros.
Falar que Fabiana Cozza não deve nesse momento histórico produzir uma representação de chave realista de dona Ivone Lara faz todo sentido, pois essa foi a condição industrial, capitalista, que providenciou a emancipação de um Zeca Pagodinho em detrimento de um Almir Guineto, que possibilitou o embranquecimento da música popular negra pela substituição de Clementinas de Jesus por Marisas Monte, de Lecis Brandão por Marianas Aidar, de Margareths Menezes por Danielas Mercury.
Temos que nos perguntar, como mulheres mestiças, e as brancas também precisam em perspectivas diferentes das nossas, pois não usufruímos de privilégios socioeconômicos como elas, quais são os mecanismos que possibilitam condições para que sejamos menos desvalorizadas que as mulheres retintas na história desse país (e as mulheres brancas ultravalorizadas em contraste com nossos corpos e agenciamentos de discurso).
Mas será mesmo que somos nós, mulheres pretas claras, as responsáveis por essa barbárie racista? E mais: foi tão simples baterem em Fabiana Cozza, tão rápido, em cinco minutos a sambista preta com maior visibilidade nacional foi transformada em uma afroconveniente como não vi acontecer com nenhum Diogo Nogueira, apoiador de governos pró-UPPs no estado do Rio de Janeiro, por exemplo. É fácil bater em mulher preta, né? Retintas ou claras, a mentalidade social machista ainda diz que somos umas estúpidas alienadas ou interesseiras.
César Menotti, da dupla César Menotti & Fabiano de sertanejo, disse no último sábado que samba era música de bandido, todo mundo riu, Serginho Groisman e a audiência inteira do programa. Leci Brandão fez uma resposta profunda em sua página: bandido é quem se vale da plataforma hegemônica da cultura brasileira para beneficiar as elites e o próprio bolso.
Não há como atacar César Menotti por sua cor, ele é branco. Não é ofensivo dizer que ele é demasiadamente branco ou que não faz jus a sua branquitude. Nos criticar pela cor, nos chamar de falsas negras ou afroconvenientes é um tiro sem escapatória. E dói pacas.
A branquitude ri de nós e aplaude enquanto encarcera mais e mais dos nossos em seus porões contemporâneos, enquanto nos elimina em praças públicas com o braço hipócrita das polícias e milícias também negras. Fizeram-nos restaurar as guerras coloniais entre africanos, indígenas e caboclos para que não tenham o trabalho de sujar as próprias mãos de sangue.
Não, eu me recuso a apontar as armas para os meus companheiros. E me recuso a ser alvo. E fortaleço meu máximo respeito por Fabiana Cozza, assim como por dona Ivone Lara, que me ensinou na vida do samba que precisamos ter reações reflexivas paritárias e transformadoras por nós e pelos nossos, ainda que sejam dolorosas, ainda que sejam paradoxais. Precisamos criar outras éticas, as que estão aí só fazem destruir.
E parto desse território sem olhar para trás. Eu sou sambista, por isso sou intelectual. E mais do que nunca, isso tudo significa que sou filha da negritude, esse estado de beleza, trabalho e inteligência que sustenta as fundamentais bases culturais e econômicas do Brasil.
Dona Ivone Lara presente, agora e sempre.