Quando internamos meu pai pela última vez, ele conheceu um rapaz que apelidou de Samurai, porque era aprendiz de artes marciais e tinha uma extrema reverência pela cultura oriental. Em uma das visitas que fiz à clínica psiquiátrica, ouvi atentamente a história do rapaz que havia feito o primeiro quadro de surto depois que fecharam a academia onde ele aprendia kung-fu. Ele me narrou com lágrimas o dia em que passou na frente do lugar e testemunhou uma imensa bola de ferro se chocando contra as paredes que abrigavam o amado tatame. Aquilo desencadeou dores mentais que já deviam estar acumuladas há muito tempo. Não sei, não sou especialista nas angústias da alma humana.
Lembrei dessa história agora enquanto desmonto meu apartamento. No caso, eu sou a imensa bola de ferro, mesmo sem querer ser, retirando das prateleiras os livros, catalogando quais são os meus e quais são os dela, dividindo as panelas, tapetes, fones de ouvido, móveis, eletrodomésticos.
Aos poucos, uma vez mais, a casa vai deixando de ser casa para tornar-se um apanhado de paredes e narrativas esparsas, tinta amarela desgastada sob os móveis que carregaram porta-retratos com imagens insuportavelmente bonitas daquele último final de ano que vivemos em Cunha. Na foto em que estamos no pico da Pedra Macela dá pra ver minha expressão aterrorizada em face de tanta altura, tanta nuvem, o pavor da queda, o pavor que Maria caísse de lá de cima, o medo calado de perder quem eu já estava perdendo.
A passagem de ano melancólica na praça central da cidade. As nossas tentativas de levar a pior viagem do mundo numa boa, em respeito à velha regra de que dessa maneira estaríamos colecionando mais uma história engraçada para contar pra nós mesmas, aos nossos filhos, nossos netos, nossa arte, rindo na cama, depois que o tempo se encarregasse de soldar o esquecimento nas frustrações. A gente sempre foi parceira.
(Eu sei que te traí naquele dia, ainda em Cunha, quando pisei no besouro que tu estavas olhando com tanta doçura. Me deu raiva da tua doçura porque eu dizia algo muito sério e indignante e tu, provavelmente exausta de ouvir minhas ladainhas políticas, só te interessavas pela porra do besouro, verde, roxo, cristalino, uma espécie em extinção que teu olho de poeta capturou em um meio instante. E eu, fera que sangra ameaçada, o ataquei esmagando-o com o peso da minha pata de unhas grossas e pretas. Tu choraste tanto com aquele meu gesto. Foi tão violento. Eu sei muito bem o que fiz, pisar no besouro foi pisar com crueldade no teu coração – verde, roxo, cristalino, em extinção – te olhando desafiadoramente nos olhos.)
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Paloma Franca Amorim
Maria, eu sinto muito.
A imensa bola de ferro que somos.
Desfazer nosso canto me dói demais.
Dói demais negociar quem vai ficar com a estante e com a mesa compradas em conjunto.
Dói demais descobrir uma vez mais que máquinas do tempo não existem.
Dói demais saber que se existissem eu não ia querer entrar nelas.
Dói demais enfiar cinco anos de vida em uma pilha de caixas com o logotipo da quitanda onde a gente comprava os tomates, as batatas.
Os maços de couve-flor e brócolis.
Os maracujás pro suco da tarde, cactos-bolhas, rosalumes, alhos-porós, abobrinhas, abacates dos tipos verdes e dos tipos vermelhos, laranjas da China, frutas-do-conde, cogumelos.
E eu desejando com a língua entre os dentes, saliva espessa e agridoce, silenciosa e desesperadamente, a carne.