Através desta carta, expresso minha inequívoca condenação da Anistia Internacional em relação ao seu papel desestabilizador na Nicarágua, meu país de nascimento.Abro esta carta citando Donatella Rovera, que disse isso na época em que era uma das pesquisadoras de campo da Anistia Internacional, o que fez por mais de 20 anos:
“Situações de conflito criam ambientes altamente politizados e polarizados. (…) Os atores e as partes interessadas passam por distâncias extraordinárias para manipular e fabricar 'provas' para o consumo interno e externo. Um exemplo recente, embora não exclusivo, é evidenciado pelo conflito sírio, que é muitas vezes considerado como a 'guerra do YouTube', com inúmeras técnicas usadas para manipular sequências de vídeo de incidentes que ocorreram em outros momentos, em outros lugares, incluindo em outros países – e apresentá-los como 'prova' das atrocidades cometidas por uma ou outra parte do conflito na Síria.”
As observações da Sra. Rovera, feitas em 2014, descrevem corretamente a situação na Nicarágua hoje, onde até mesmo o preâmbulo da situação foi manipulado para gerar rejeição ao governo da Nicarágua. O maliciosamente intitulado informe da Anistia Internacional “Atirar para Matar: Estratégia da Nicarágua para reprimir o protesto” poderia ser desqualificado ponto por ponto, mas isso exigiria um tempo precioso que o povo da Nicarágua não tem. Portanto, vou me concentrar em dois pontos principais:
1) O informe carece totalmente de neutralidade e;
2) O papel que a Anistia Internacional está desempenhando está contribuindo para o caos em que a nação se encontra.
Reprodução
Apesar de estar sempre entre as nações mais pobres das Américas e do mundo, a Nicarágua conseguiu, desde que Ortega retornou ao poder em 2007, reduzir a pobreza em três quartos
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A narrativa operante, acordada pela oposição local e pela mídia corporativa ocidental, é a seguinte: que o presidente Ortega quis reduzir cinco por cento dos pagamentos mensais aos aposentados e aumentar as contribuições de empregados e empregadores para o sistema de previdência social. As reformas provocaram protestos, aos quais o governo respondeu com um ato genocida contra manifestantes pacíficos, matando mais de 60 pessoas, a maioria estudantes. Um dia ou dois depois disso, o governo da Nicarágua teria que esperar até o anoitecer para desencadear sua força policial, a fim de dizimar a população da Nicarágua, noite após noite, cidade por cidade, no processo de destruir seus próprios edifícios governamentais e assassinando sua própria polícia, até que seu ataque assassino culmina com um massacre no Dia das Mães, e continua dessa forma.
Embora a narrativa anterior não seja uniformemente expressa por todos os atores antigoverno, os elementos unificadores são que o governo é genocida e que o presidente e a vice-presidenta devem partir.
As afirmações da Anistia Internacional se baseiam sobretudo em testemunhos de pessoas e vítimas antigoverno, ou em informações infundadas e manipuladas emitidas pela mídia de oposição e inúmeras organizações não-governamentais (ONGs) financiadas pelos EUA, conhecidas coletivamente como sociedade civil.
As três principais organizações de mídia citadas no relatório: Confidential, 100% Noticias e La Prensa, que são arqui-inimigos do governo de Ortega; quase todos os meios de comunicação da oposição, juntamente com as principais ONGs citadas no relatório, também recebem financiamento dos Estados Unidos por meio de organizações como o Instituto Nacional Democrático (NDI na sigla em inglês) e a Fundação Nacional para a Democracia (NED), que tem sido caracterizada pelo congressista americano aposentado Ron Paul como “…uma organização que usa nossos impostos para subverter a democracia, tomar conta de financiamentos de partidos ou movimentos políticos favorecidos no exterior, contribui para 'revoluções populares coloridas' no exterior que são mais semelhantes aos escritos de Lenin sobre como roubar o poder de genuínos movimentos democráticos autóctones”.
O relatório da Anistia Internacional depende fortemente da cobertura do 100% Noticias, um canal de televisão que transmitiu materiais manipulados e incendiário para gerar ódio contra o governo da Nicarágua, incluindo imagens de manifestantes pacíficos, sem dar-se conta de que portavam pistolas e rifles e que dispararam contra membros da polícia nacional durante os incidentes relatados pelo canal como atos de repressão policial durante as marchas da oposição. No Dia das Mães, 100% Noticias reportou um suposto tiroteio contra manifestantes desarmados por atiradores da polícia, incluindo um incidente no qual o cérebro de um jovem homem escorreu de seu crânio. O canal alimentou o relatório com uma fotografia que a Sra. Rovera descreveria como um”…incidente que ocorreu em outras ocasiões, em outros lugares”. A foto incluída no relatório foi rapidamente confrontada em redes sociais com links para artigos antigos online que tinham usado a mesma imagem.
Uma das fontes citadas (nota nº 77) para comprovar a alegada negação de cuidados médicos a pacientes em hospitais do Estado feridos em atos de oposição – uma das principais acusações repetirdas e reafirmadas pela Anistia Internacional – é uma conferência de imprensa transmitida por La Prensa, em que o chefe de equipe cirúrgica refuta alegações de que ele tinha sido despedido, e de que funcionários do hospital haviam negado atenção aos manifestantes no início do conflito. “Eu repito”, ele dizia, “o que eu recebi como ordem como chefe de cirurgia, eu vou ser claro, foi atender a toda a população que vier, sem investigar absolutamente nada”. Em outras palavras, uma das fontes da Anistia Internacional contradiz uma das principais alegações em seu relatório.
Os exemplos acima mencionados de evidências manipuladas e fabricadas, para usar as palavras da pesquisadora da Anistia Internacional, representam apenas uma pequena amostra, mas capturam a essência desta modalidade de mudanças de regime patrocinadas pelos EUA. O relatório é alimentado por declarações de pessoas de um lado do conflito e é baseado em evidências profundamente corrompidas; em última análise, ajuda a criar a ilusão de um Estado genocida, por sua vez, gerando mais sentimento contra o governo, localmente e no exterior, e prepara o caminho para uma maior intervenção estrangeira, cada vez mais agressiva.
Uma narrativa diferente
As reformas da segurança social originais não foram propostas pelo governo sandinista, mas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), e recebeu o apoio de Cosep (Conselho Superior da Empresa Privada, entidade que reúne o empresariado nicaraguense). Elas incluíam o aumento da idade de aposentadoria de 60 para 65 e dobrar o número de acções necessárias para obter a pensão, de 750 a 1.500. Entre os aposentados afetados, cerca de 53.000, se encontram famílias de combatentes mortos no conflito armado nicaraguense, tanto do lado do exército sandinista, como dos “Contras”, o exército mercenário financiado pelo governo dos EUA na década de 1980, mesma época em que o NED foi criado, em parte para parar a propagação do sandinismo na América Latina.
O governo da Nicarágua se opôs às reformas do FMI, rejeitando a suspensão de benefícios para qualquer aposentado, e propondo, em vez de um corte de 5% de todos os pagamentos de aposentadoria, um aumento de todas as contribuições para a seguridade social e uma reforma tributária que elimina um teto fiscal que protege os salários mais altos da Nicarágua. O setor empresarial ficou furioso, e com organizações não governamentais, organizou as primeiras marchas usando o pretexto das reformas da mesma maneira manipuladora que o relatório da Anistia Internacional as explica: “… a reforma aumentou contribuições para a seguridade social dos empregadores e empregados e uma contribuição adicional de 5% para os aposentados “.
De acordo com a versão dos acontecimentos da oposição, repetida e validada pela Anistia Internacional, os manifestantes são pacíficos, o governo é genocida e irracional e está empenhado em cometer atrocidades a olhos vistos. Enquanto isso, o número de mortos entre os simpatizantes e policiais sandinistas continua aumentando. O relatório disse que a pesquisa balística indica que os disparos contra os manifestantes foram, provavelmente, feitos por atiradores treinados, sugerindo o envolvimento do governo, mas não menciona que muitas das vítimas são sandinistas, cidadãos comuns e policiais. Ele também não menciona que os “manifestantes pacíficos” queimaram e destruíram mais de 60 edifícios públicos, incluindo muitas prefeituras, casas sandinistas, mercados, oficinas de artesanato, estações de rádio, e muito mais; nem menciona que os manifestantes estabeleceram “barricadas” ou bloqueios de estradas, como uma tática para enfraquecer a economia e, assim, derrubar o governo. Estas “barrairas” tornaram-se lugares extremamente perigosos, onde ocorreram assassinatos, roubos, sequestros e estupro de pelo menos uma garota, uma jovem grávida, cuja ambulância ficou bloqueada por uma barreira, levando-a à morte em 17 de maio. Todos esses crimes ocorrem diariamente e estão bem documentados, mas não estão incluídos no relatório da Anistia Internacional.
Se a organização tem o direito de criticar a reação de menosprezo do governo diante dos primeiros protestos, esta reação não era inteiramente incorreta. Segundo o relatório, a vice-presidente Murillo disse, entre outras coisas, queos manifestantes “inventaram fatalidades (…) como parte de uma estratégia antigoverno”. O que exclui a Anistia de seu relato é que vários dos alunos tidos como mortos realmente apareceramapareceram vivos, um deles na Espanha. Outros não foram mortos em protestos, nem eram estudantes ou ativistas, incluindo um que morreu de uma bala perdida e um que morreu de um ataque cardíaco em sua cama.
O relatório da Anistia Internacional também deixa claro que muitos estudantes abandonaram o movimento, alegando que há criminosos entrincheirados em universidades e em diferentes bodegas, que só estão interessados em desestabilizar o país. Esses criminosos criaram um estado de terror constante na população, impondo “impostos” para aqueles que querem mover-se, perseguindo aqueles que se recusam a ser detidos, sequestrando, batendo, torturando e colocando fogo em seus carros. Uma prática que se tornou comum é despir as vítimas, pintar seus corpos publicamente com o azul e branco da bandeira da Nicarágua e depois soltá-los e incitá-los a correr momentos antes de atirar neles com morteiros. Todas essas informações, que não fazem parte do relatório, estão disponíveis em vários vídeos e outras fontes.
Por que a Nicarágua?
A leitura mais básica da história entre a Nicarágua e os Estados Unidos mostrará uma clara rivalidade. Desde meados do século XIX, a Nicarágua tem resistido à interferência dos EUA nos assuntos do país, resistência que continuou durante o século XX, primeiro com a luta do general Augusto C. Sandino nas décadas de 1920 e 1930 e depois, com os sandinistas, organizados na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que em 1979 derrubou a ditadura da família Somoza, apoiada pelos EUA por mais de 40 anos. A FSLN, apesar de ter chegado ao poder por meio da luta armada, organizou eleições logo após seu triunfo em 1984, sendo em seguida derrotada por uma coalizão de partidos políticos de direita em 1990, também apoiada pelo governo dos EUA. Apoiada por pactos com a igreja e a oposição, a FSLN novamente conseguiu vencer as eleições em 2006 e permanece no poder desde então.
Além dos laços estreitos entre Nicarágua e Venezuela, Cuba, Rússia e especialmente a China, país com o qual a Nicarágua assinou um contrato para construir um canal, a outra razão principal pela qual os Estados Unidos continuam sua campanha anti-sandinista é o modelo econômico bem-sucedido do governo da Nicarágua, que representa uma ameaça existencial à ordem econômica neoliberal imposta pelos Estados Unidos e seus aliados.
Apesar de estar sempre entre as nações mais pobres das Américas e do mundo, a Nicarágua conseguiu, desde que Ortega retornou ao poder em 2007, reduzir a pobreza em três quartos. Antes dos protestos em abril, a economia do país sustentou um crescimento econômico estável de cerca de 5% por vários anos, e foi a terceira economia que mais cresceu na América Latina e o país era também um dos mais seguros da região.
As melhorias de infraestrutura do governo facilitaram o comércio entre os cidadãos mais pobres da Nicarágua; o acesso universal à educação primária, secundária e universitária foi criado; há terra, habitação, programas de nutrição e muito mais. O sistema de saúde, embora modesto, não é apenas excelente, mas acessível a todos. Cerca de 90% dos alimentos consumidos pelos nicaraguenses são produzidos na Nicarágua, e cerca de 70% dos empregos não vêm de grandes corporações, mas a economia popular, incluindo os pequenos investidores dos Estados Unidos e da Europa, que se estabeleceram no país para converter-se numa força motriz por trás da indústria do turismo.
O êxito desta audácia, de dar aos seus cidadãos mais pobres uma vida com dignidade, para ser um exemplo de soberania para os países mais ricos e mais poderosos, tudo em contradição direta com o modelo neoliberal e sua ênfase na privatização e austeridade, uma vez mais pôs a Nicarágua no alvo da intervenção dos EUA. Imagine o exemplo para outras nações – suas economias já estranguladas pelas políticas neoliberais -, ao tomar consciência de que um dos países mais pobres do mundo pode alimentar seu povo e aumentar sua economia sem ter que lançar seus cidadãos mais pobres sob a bota de ferro do capitalismo. Os Estados Unidos nunca vão tolerar um exemplo tão perigoso.
Para concluir
O governo da Nicarágua tem deficiências e contradições nas quais deve trabalhar, como todos os governos, e como sandinista eu gostaria de ver o partido transformado de várias maneiras importantes, tanto interna como externamente. No entanto, tenho me abstido de escrever sobre essas deficiências e contradições, já que os violentos protestos e o caos que vimos não são o resultado das deficiências do governo da Nicarágua, mas sim de seus muitos de seus sucessos; essa verdade incômoda é a razão pela qual os Estados Unidos e seus aliados, incluindo a Anistia Internacional, optaram por “…criar ambientes altamente politizados e polarizados (…) [e] percorrer distâncias extraordinárias para manipular ou fabricar” evidências “para o consumo interno e externo”.
Em um momento em que a Organização dos Estados Americanos, as Nações Unidas e o Vaticano apontaram as reformas pacíficas e constitucionais como a única saída para o conflito, a Anistia Internacional continuou a implorar à comunidade internacional que não “abandonasse o povo nicaraguense”. Essa postura tendenciosa, obscenamente “inchada” por informações manipuladas, distorcidas e unilaterais, agravou ainda mais a terrível situação na Nicarágua. A perda de vidas na Nicarágua, incluindo o sangue de pessoas ignoradas pela Anistia Internacional, tem sido usada para fabricar as “provas” usadas no relatório da organização e transforma a organização em cúmplice de qualquer futura intervenção estrangeira que possa chegar e cair sobre o povo nicaraguense. Agora está nas mãos da organização corrigir esse mal e fazê-lo de um modo que reflita um forte compromisso, antes de tudo, com a verdade, seja ela qual for, e com neutralidade, a paz, a democracia e, sempre, com a soberania de todas as nações do mundo.
Sinceramente,
Camilo E. Mejia
Veterano, opositor e objetor de consciência da guerra no Iraque (2003-2004)
Ex-prisioneiro de consciência da Anistia Internacional (2004)
Nascido na Nicarágua, um cidadão do mundo
Tradução: Haroldo Ceravolo Sereza