No filme Fitzcarraldo, dirigido por Werner Herzog e lançado em 1982, a
imagem da personagem que dá título à obra chegando com sua imensa embarcação no
alto Amazonas, sorridente e satisfeita por levar a ópera de Caruso às
comunidades ribeirinhas, é uma representação precisa da mentalidade das elites
paraenses. Fitzcarraldo ignora o entorno cultural, econômico e político das
populações que procura alimentar com sua arte dita superior, sacrificando
inclusive vidas de trabalhadores indígenas e caboclos que contrata para
conseguir chegar a Iquitos, no Peru.
Em nome de seu fisioculturismo
intelectual, Fitzcarraldo torna-se uma figura vazia e grotesca ao insistir que
suas propostas estéticas salvarão a Amazônia da condição de selvageria
percebida pelo lado da História colonizador e autocrático.
Nesse mês o novo Bar do Parque passou a funcionar na Praça da República, em
Belém. O Bar, para quem não sabe, é um espaço histórico da cidade por onde
passaram grandes artistas e ativistas do contexto amazônico e nacional. Nesse
tempo áureo o Bar do Parque recebia esses nomes reconhecidos bem como pessoas
anônimas, homens, mulheres, travestis, trabalhadoras do sexo e uma boemia que
não dependia de alto poder aquisitivo para ter o direito de circular nos
territórios da cidade.
A tentativa de renovação do Bar
do Parque, sem um processo de licitação às claras, conferiu ares aristocráticos
ao espaço, o que acentua o fato das metrópoles amazônicas nas mãos das elites
coronelistas caracterizarem-se pelo passado colonial, herdeiro de sesmarias e
Belle Époque, e não por um presente comprometido com a transformação e jamais
pela projeção de um futuro socialmente emancipador.
Os altos preços encontrados no
cardápio do novo Bar definem o público que agora ocupa o jogo de mesas e cadeiras
de modelo europeu. O processo de expulsão de frequentadores populares é
explícito, se dá pela força do capital. Trata-se de ação excludente e
higienista para a qual as classes remediadas e/ou abastadas capazes de consumir
o novo Bar do Parque fecham os olhos,
fugindo de sua responsabilidade no processo de gentrificação da Praça da
República e arredores.
Gabriela Sobral, escritora
paraense, pós-graduada em Preservação do Patrimônio Cultural, fez seus
comentários sobre o assunto:
(…) Aí a diferença de reforma
ou revitalização. O que fizeram foi uma reforma para os interesses das mesmas
classes, dos mesmos coronéis, se você reclama das políticas culturais do Paulo
Chaves, isso faz parte delas, criar vitrines, espaços controlados. Todo mundo dá
graças a deus porque o Bar do Parque foi reformado, os olhinhos brilhando para
a salvadora iniciativa privada. Por isso não foi REVITALIZADO, revitalização
tem a ver com territorialidade, com a inserção de pessoas e suas culturas ao
redor, inserção de quem eram os verdadeiros detentores e não deixaram aquela
coisa cair por anos.”.
NULL
NULL
E completa:
(…) Bar do Parque, agora, é reforma da iniciativa privada, feita para seres privados e sua ideia deturpada de desenvolvimento. Revitalização tem a ver com territorialidade, ou seja, pensar para além da coisa física, pensar em todos que sempre mantiveram aquilo ali funcionando. ‘era só puta, bandido, mendigo…’ que bom, porque é essa galera que vai pra front e não o baixo centro descolado, eram esses grupos, PESSOAS, que movem os músculos há tempos. Revitalização anda de mãos dadas com o processo de DEMOCRATIZAÇÃO. Isso mostra o quanto não estamos acostumados com a vida pública. Mostra a ineficiência ou má vontade do Estado em criar políticas públicas inclusivas. Não pense que você vai circular por ali, entrar, bater um papo com um amigo que já tá sentado. Você precisa de comanda, lista de espera, ser anunciado. Mais uma vez criam-se portões. (…) não podemos praticar um desvio de caráter e dizer que o Bar é para todos, não é. Mais um território fechado. Enquanto o sentimento bellepoquense de desfrute, de lugar legal pra frequentar foi devolvido para a classe média/aristocracia ressentida e burguesia cafona outros grupos estão afastados, alguns morrendo, tendo sua sanidade destruída por não-pertencimento, desumanização total de quem são. Queremos Bar do Parque lindo sim, mas queremos viver a vida pública.”.
Os frequentadores do antigo Bar do Parque não estavam de acordo com as condições sanitárias que há décadas caracterizavam o estabelecimento, mas de forma alguma aceita-se que a saída proposta seja elitizar o espaço ao invés de rever suas estruturas a partir do ponto de vista popular que sempre balizou as relações comerciais e humanas no local.
Fitzcarraldo e seu empreendimento operístico teria vergonha de si se visse o que seus pares/herdeiros promovem na Amazônia. Talvez a consciência dessas pessoas só de fato se revele diante de um espelho ético, talvez então seja possível notarem o quanto contribuem para a desigualdade social quando acham que estão fazendo o bem para uma região.