É imensa a medida da devastação que a Alemanha sofreu nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Recebeu em solo, apenas da Royal Air Force (a força aérea britânica), um milhão de toneladas de bombas. Contabilizou cerca de 600 mil vítimas civis e 131 cidades atingidas. Locais como Colônia e Dresden foram praticamente reduzidos a escombros
E esses escombros viraram morada de ratazanas e vermes, companhia nada agradável aos mais de sete milhões de desabrigados. Foi uma humilhação sem precedentes para um povo que, pouco tempo antes, protagonizava um crescente de dominação sobre a Europa. Entretanto, apesar de inédita, essa derrocada foi apagada da memória alemã e ignorada pela literatura do pós-guerra no país.
É essa ideia polêmica que o escritor alemão W.G. Sebald (1944-2001) levanta em “Guerra Aérea e Literatura” (Companhia das Letras; R$ 39), lançado no Brasil em junho deste ano. O livro reúne conferências dadas pelo autor em Zurique no fim dos anos 1990. Nelas, Sebald, cuja obra é composta por romances entrelaçados com a história europeia, decide voltar-se a uma crise também de sua própria memória: quando era criança, sentia que algo do passado do seu país lhe era escondido pela escola e pela família.
Para entender melhor esse episódio, o autor mergulha nos sombrios bastidores da guerra. Cria a tese de que, depois de ter se reconstruído, a Alemanha conduziu uma nova aniquilação: a de sua história. Isso em função de uma série de complexos motivos – como o sentimento de que a nação teria recebido uma punição justa pelos horrores cometidos durante o Terceiro Reich e até certa vaidade em mostrar-se forte, recuperada.
A literatura do período seguiu o mesmo rumo. Parte dos autores se preocupou mais em reestruturar sua carreira do que em documentar a história recente do país. Outros escreveram sobre o assunto alicerçados pelo uso excessivo de simbolismo e “ornamentação linguística”.
Alguns poucos, porém, teriam se dedicado verdadeiramente à temática, originando a “literatura dos escombros”. Sua força, no entanto, mostrou-se inadequada para o momento. A obra “O Anjo Silencioso”, de Heinrich Böll (1917-1985), por exemplo, reproduzia com exatidão o horror que acometeu a Alemanha, mas só foi publicada em 1992, porque não teria sido tolerado pelos leitores da época.
Relato de destruição
Mais de 60 anos depois, Sebald acerta as contas com essa literatura falha e se encarrega de registrar, no livro, os impactos da guerra aérea sobre a Alemanha. Não poupa, para isso, detalhes escatológicos – fala dos odores dos corpos em decomposição e do tamanho dos vermes, alguns da extensão de um dedo.
Tamanha provocação do autor não passou despercebida quando ministrou os seminários. Ele conta ter recebido inúmeras cartas raivosas. Uma delas, um tanto quanto delirante, defendia que os aliados, sob o comando dos judeus, tinham como missão roubar dos alemães seu legado e sua origem.
Essa movimentação faz com que Sebald deixe de lado a rigidez com que julga os escritores do pós-guerra e pondere: “é impossível sondar as profundezas da traumatização nos espíritos de quem escapou dos epicentros das catástrofes. O direito ao silêncio que essas pessoas em sua maioria se arrogam é tão inviolável quanto o dos sobreviventes de Hiroshima”.
Literatura multifacetada
Depois do pós-guerra, a literatura alemã estava prestes a sofrer outra revolução. Se mostrou-se lacunosa diante daqueles horrores, torna-se mais rica com a construção do Muro de Berlim. Vê-se, então, o surgimento de dois tipos de literatura: ao lado ocidental, um estilo influenciado principalmente pela literatura norte-americana, que tem, como uma de suas características, a predileção por “short stories”; ao lado oriental, a escrita era mais carregada de engajamento político.
A unificação da Alemanha, pós-1989, inaugura, finalmente, uma busca pelas raízes históricas do país. Sebald é um dos protagonistas desse movimento: com documentos históricos aliados a sua prosa afiada, ele constrói um trabalho fundamental para a formação de sua memória individual e da Alemanha.
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