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Muitos podem pensar que A Dama de Ferro é um filme biográfico. Mas quem está em cena não é a Lady Margaret Thatcher, filha de um comerciante que ganhou destaque na política britânica nas décadas de 1970 e 1980. A única mulher a ocupar o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido, figura politica controversa que, em 11 anos de poder, colecionou títulos por suas decisões polêmicas é outra.
Já em cartaz em Londres e com estreia marcada para esta sexta-feira (10/02) no Brasil, o filme apresenta uma mulher de 86 anos que sofre de Alzheimer. E nessa colcha de retalhos entre política e drama, escolhe usar o que resta a ela de memória para reviver um passado bastante infeliz. Ali, a conservadora ganha um caráter repleto de sensibilidade. E deixa para trás a fama de cruel, embaralhada numa mistura de cenas reais e ficção.
No longa, Meryl Streep está fantástica no papel principal, como era de se esperar. No entanto, é justamente isso o que mais incomoda. É no desempenho da atriz que o filme apresenta problemas e se torna superficial diante da história. Não são os dias de glória de Thatcher em questão. E sim, seu presente confuso, camuflado por uma atuação brilhante.
A rigor, o filme não mostra Margaret Thatcher nem Meryl Streep. É como se ambas estivessem irreconhecíveis. E se você pensar, isso faz sentido. Para se tornar primeira-ministra, Thatcher mudou o corte de cabelo, abandonou sua coleção de chapéus e fez aulas de fono para transformar sua voz estridente em um tom que passasse firmeza. E também, para que gritasse menos. Em cena, Streep está reconstruída por trás de uma maquiagem irretocável, uma nova voz e um sotaque perfeito.
Sob comando da britânica Phyllidia Lloyd (que dirigiu Streep três anos antes em Mamma Mia!), o apelo é mostrar Maggie, mãe e esposa apaixonada, sofrendo sozinha, iludida com a “presença” de seu falecido marido Denis (Jim Broadbent), empresário do petróleo e seu grande incentivador.
Como uma espécie de amigo imaginário, ela passa os dias conversando com ele. Escolhe seus ternos e separa o jornal para que ele possa ler, e chega até a ouvir que está bebendo uísque demais.
Mesmo que sua filha Carol (Olivia Colman) insista em jogar fora todas as roupas e objetos que pertenciam a ele, ela teima e tenta se convencer de que não está ficando louca. Coloca para fora, então, o temperamento forte e um quê de quem sempre está com a razão – que então permanece totalmente associado à doença. O outro gêmeo, Mark, só consta no filme por telefone, dizendo que novamente não vai poder vê-la. Fora do longa, o filho – que vive na África do Sul – evita falar sobre a vida política da mãe. E quando declara algo, são parcos e incomodados comentários.
A vida política
Nunca pintada como vilã, Thatcher aparece como uma mulher que deve ser forte em uma profissão dominada pelos homens. Estão ali seu trabalho como ministra da Educação e da Ciência e sua ascensão dentro do Partido Conservador para, então, ascender ao cargo de primeira-ministra. Mas atrás de toda decisão política, a lente se aproxima de suas mãos e foca a aliança para lembrarmos do quanto ela amava o marido. São ainda os flashbacks que trazem os momentos-chave de sua vida pessoal. E é sempre a mulher que aparece em primeiro plano, quase nunca a figura política.
Essa figura aparece quase sempre de passagem, dentro ou fora do Parlamento, ou na porta do número 10 da Downing Street. O filme é situado em meio a momentos de grande agitação social no Reino Unido, como, por exemplo, os bombardeios e a greve dos mineiros – um dos mais emblemáticos protestos do governo Thatcher. Mas esses acontecimentos são cobertos com grande pressa. É como se, com a doença, ela já não pudesse lembrar dos detalhes, o que distorce a dimensão dos eventos. Os fatos se perdem ainda mais por causa dos clichês. A policia montada, em combate com os trabalhadores, é musicada pelo som do punk inglês. Um verdadeiro motim.
Através das lentes, percebe-se que mesmo com frieza, quase sempre ela está sob pressão. Mas a intensidade dos acontecimentos é sempre disfarçada, nunca chega a emocionar. Nem mesmo quando ela resolve dominar as Ilhas Malvinas, numa guerra que, segundo ela, os argentinos que começaram e que, portanto, jamais cederia a um acordo de paz. “Não se negocia com mafiosos”, ela chega a dizer.
De uma hora para outra, a classe trabalhadora insatisfeita e os cartazes revelando o maior índice de desemprego desde 1934 saem de cena para dar lugar às centenas de bandeiras britânicas, carregadas com orgulho pela sociedade. Estampando o maior sorriso do filme, dentro do Parlamento, ela diz que aquele seria um dia para não haver diferenças entre os partidos. Era um dia de felicidade para o país todo, seja de direita ou esquerda. E no filme a oposição se cala. A narrativa, mais uma vez, morre em um jogo de memórias.
O que se espera de um filme sobre a Dama de Ferro
É verdade que por ser uma pessoa polêmica, talvez fosse complicado para a diretora escolher quem ela iria mostrar. Para os britânicos mais conservadores, Thatcher foi um modelo de resistência que transformou o Reino Unido em uma nação próspera. Mas, geralmente lembrada por sua personalidade ambiciosa e cruel, é ainda sinônimo de uma pessoa que fazia cortes públicos constantes e nunca se preocupou com os pobres. “Ela aumentou as taxas e fez com que os ricos ficassem mais ricos e os pobres não importassem. Ela nunca ajudou os pobres, mas agora vendo o filme, com ela doente assim, eu chego a ter dó”, disse Claire Tottin, de 82 anos, ao final da sessão. Christian Wolmar, escritor e especialista em transporte, autor dos livros “Engine of War e Blood”, Iron and Gold, rebate: “É bobo, apolítico, nonsense. Ame ou odeie Margaret Thatcher, o filme não fala sobre política, e sim sobre envelhecer.”
Wikicommons
O primeiro-ministro, David Cameron, do Partido Conservador, declarou o mesmo ao jornal Daily Mail. “O filme concentra muito na doença em vez de celebrar o que representou essa grandiosa primeira-ministra”. Em entrevista no Canal 4, da BBC, ele continuou indignado: A atuação da Meryl Streep está fantástica, mas não dá para não imaginar por que temos um filme como esse bem agora. É muito mais sobre envelhecer.” O “bem agora” a que ele se refere tem a ver com a crise que o Reino Unido enfrenta e que, assim, afeta a sua popularidade e também a de seu partido. Mostrar uma Thatcher doente e com problemas de memória é como dizer que os conservadores estão ultrapassados, já que sua imagem ainda é muito presente.
Fato é que não chega a ser ruim demais, porque o elenco ajuda. Mas sua audiência comprova que está longe de ser o que esperava e a verdade é que ele seria melhor aproveitado se veiculasse como uma série de televisão, em vez de longa. Para o professor de Políticas a Ciências Sociais da Universidade de Westminster, Richard Barbrook, assistir ao filme está fora de cogitação. “Para a gente, que viveu sob o regime Thatcher, essa mulher é um monstro que causou tantos danos ao País que, ainda hoje, ele não se recuperou totalmente. Eu não posso imaginar nada menos prazeroso do que sair de casa para assistir a uma produção hollywoodiana que quer me fazer simpatizar com ela. Mesmo depois de tantos anos, aquela voz arrogante ainda me causa enjoo”, diz. O que os seus leitores precisam saber é que o seu partido impôs suas políticas neo-liberais mesmo conseguindo apenas 42% do voto popular.
O defensor de Direitos Humanos Peter Tatchell também não pensa em ir ao cinema e tem seus motivos. “Margaret Thatcher era uma mulher extraordinária, mas pelas piores razões. Ela arrebentou o teto de vidro da política machista e chegou ao topo em uma carreira dominada por homens. Bravo! No entanto, ao se tornar primeira-ministra, ela fez pouco no que diz respeito aos direitos da mulheres. Ela era uma direitista infernizadora cheia de testosterona!”, diz.
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