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Juan Salvo, “O eternauta”, em seu famoso traje hermético, que o protege da neve mortal
Catástrofes mundiais e a imobilidade do ser humano diante delas hoje encontram nos zumbis sua interpretação pop mais comum, conforme comprovam quadrinhos celebrados, copiados e adaptados mundo afora, como “The Walking Dead”. Mas muito antes dos mortos vivos, e aqui, na América Latina, a ameaça do fim do mundo já havia se apresentado com qualidade muito superior, escrevendo um importante capítulo da tradição dos comics latinos.
“O Eternauta”, ficção científica sobre um ataque extraterrestre à Terra que acontece em plena Buenos Aires dos anos 50, é a mais icônica das HQs argentinas. Sua tradução ao português acaba de ser lançada no Brasil, com nada menos do que 55 anos de atraso, através do selo Martins, da editora Martins Fontes.
Apesar da demora, poucas histórias são mais relevantes para o mundo hoje. Crítica sutil e criativa à opressão imperialista sobre os países latino-americanos, “O Eternauta” foi escrito por Héctor Germán Oesterheld e desenhado por Francisco Solano López numa época em que a Argentina sofria as agitações políticas que resultaram na instalação de uma das ditaduras mais violentas do continente. Mantendo um forte tom realista, os acontecimentos são narrados por Juan Salvo, o Eternauta, quem se materializa na casa de um desenhista de quadrinhos para narrar sua saga de viagens pelo tempo desde que a cidade foi coberta por misteriosos flocos de neve que causaram a morte da maioria de seus habitantes.
O tom de protesto não é gratuito. Oesterheld, geólogo de formação e leitor voraz desde jovem, construiu sua carreira como roteirista de quadrinhos sobre uma crescente base de caráter político. A partir da década de 60, depois de estrear “O Eternauta” no Hora Cero Suplemento Semanal, o escritor lançou títulos considerados provocadores, como a biografia em quadrinhos de Che Guevara, e uma série de histórias com vieses anti-imperialistas, como “Latinoamérica y El imperialismo – 450 años de guerra”, publicadas pelo jornal El Descamisado, da Juventude Peronista.
O próprio “Eternauta”, quando relançado pela revista Gente com desenhos de Alberto Breccia em 1969, passou por um processo de politização que conquistou a ira de muitos com passagens polêmicas – como a que os países desenvolvidos, em negociação com os extraterrestres, oferecem a América do Sul em troca de sobrevivência. Graças às suas “provocações”, Oesterheld foi preso e, provavelmente executado, em 1977 por agentes da ditadura – os mesmos que assassinaram antes dele suas quatro filhas, na época também militantes de esquerda.
Ainda se negocia a adaptação de “O eternauta” ao cinema. Depois da saída da cineasta argentina Lucrecia Martel do projeto, outros realizadores disputam a direção do filme
Historietas
Com autores célebres como Quino (“Mafalda”) e Fontanarrosa (“Boogie, el aceitoso”), a Argentina lidera a tradição latina de quadrinhos – ou “historietas”. Mas a produção é intensa em países como Brasil (com Ziraldo, Glauco, Laerte), México (Sixto Valencia, Gabriel Vargas) e Chile (Pepo).
Os especialistas não falam de uma identidade comum, mas reconhecem uma produção tradicional no gênero, marcada por traços culturais que influenciam a maioria dos artistas. Se nos Estados Unidos, imperam as aventuras de super-heróis e, na Europa, as histórias de cunho filosófico e os temas existenciais, na América Latina a preferência é por humor, sarcasmo e uma certa desenvoltura nos assuntos mais pesados.
A biografia em quadrinho de Fidel Castro foi lançada primeiro na Europa, ao lado de “biograficafias” de personagens como Sigmund Freud, Virgina Woolf e Pablo Picasso
Novidades
Fala-se também no fim da era dos quadrinhos de banca e no crescimento dos quadrinhos de livraria, que incrementa o mercado. Nesse setor, uma das novidades recentes é o filão das “biograficafias” – criado pelos franceses, conhecidos por sua paixão por biografias e historias gráficas.
Da Europa para o Brasil, chegou recentemente “Castro”, lançado aqui pela editora 8Inverso. A história do líder cubano foi transformada em quadrinhos pelo alemão Reinhard Kleist, que já havia adaptado às tiras as vidas de Elvis Presley e Johnny Cash. Para Klein, “as pessoas precisam de heróis”, daí a importância de ressaltar a trajetória daqueles cujas vidas valem uma saga.
No caso de “O eternauta”, vale ressaltar que o herói é ainda mais inspirador. Segundo seu próprio criador, o verdadeiro super-homem da história é coletivo. “O único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, o herói solitário”. Foram essas as exatas palavras de Oesterheld que viajaram – e continuarão viajando – pelo tempo.
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