A semana que antecede o segundo-turno das eleições presidenciais no Egito está sendo marcada por mais incertezas do que debates entre os presidenciáveis. A praça Tahrir continua tomada por acampamentos de manifestantes e promete ser palco de mais protestos até a votação marcada para este fim de semana (16 e 17 de junho).
A Suprema Corte do Egito realizará nesta quinta-feira (14/06) nova audiência para decidir se o candidato Ahmed Shafiq permanece na corrida presidencial ou se será impugnado devido à Lei de Cassação aprovada em abril deste ano, que impossibilita altos membros do regime do ex-ditador Hosni Mubarak de concorrer à presidência ou a outro cargo público nos próximos cinco anos. Shafiq foi o último primeiro-ministro de Mubarak.
Efe
Mohmamed Mursi, da Irmandade Muçulmana (esq.) enfrenta o ex-premiê Ahmed Shafiq no 2º turno das eleições
A Corte também decidirá sobre a constitucionalidade das eleições parlamentares de dezembro de 2011. Segundo a lei eleitoral, um terço do parlamento deveria ser reservado a candidatos independentes, mas esta resolução não foi cumprida.
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Eleitores e analistas diferem sobre o resultado das urnas, mas parecem chegar à mesma conclusão sobre o futuro político do país – tudo pode acontecer durante e após o processo eleitoral. “Enquanto conversamos, toda a situação pode mudar”, disse por telefone ao Opera Mundi Ashraf Sheriff, analista político da Universidade Americana do Cairo. “Uma lei pode não entrar em vigor, uma lei pode ser alterada. Qualquer cenário é possível neste contexto de instabilidade, dúvidas e jogos políticos”, afirmou. “Não acredito que a Corte decida amanhã a favor da aplicação da Lei de Cassação e isso só levará a mais protestos pelo país”.
No segundo-turno das eleições presidenciais, os egípcios escolherão um presidente que não tem o seu poder definido, já que o país ainda não tem uma Constituição em vigência.
Durante o regime de Hosni Mubarak (1981-2011), o Egito foi governado através de uma república presidencialista com partido único (apesar de oficialmente ter sido uma república semi-presidencialista multipartidária). Quando Mubarak deixou o poder, logo após o início da Revolução Egípcia, em janeiro de 2011, a antiga Constituição foi descartada e a nova ainda não foi escrita. “Este é o nosso grande dilema neste momento. Temos um processo eleitoral que está sendo acompanhado pelo mundo inteiro para escolher um presidente cujo poder é completamente desconhecido. É como se caminhássemos na contramão da lógica”, conclui Sheriff.
Em dezembro de 2011, após as eleições legislativas, mais de 70% do Parlamento ficou sob o controle de islamistas e salafistas, que anunciaram a intenção de implementar a sharia (lei islâmica) no país. E é responsabilidade deste Parlamento escrever a nova Constituição.
Caso Mohammed Mursi ganhe as eleições, a constituição vai ser escrita de acordo com suas aspirações políticas, já que conta com a maioria no Parlamento. Caso ganhe Ahmed Shafiq, os deputados do parlamento egípcio provavelmente reduzirão os poderes do presidente, criando uma república parlamentarista.
No entanto, seis meses após as eleições legislativas, o poder e a popularidade da Irmandade Muçulmana parecem ter sido postos em xeque neste primeiro turno das eleições presidenciais, realizado nos dias 23 e 24 de maio. 45% das pessoas votaram na Irmandade em dezembro, mas apenas 25% deram o voto a este grupo nas presidenciais de maio.
Entre a cruz e a espada
A sinuca política do Egito não é simples. De um lado, a Irmandade Muçulmana enfraquecida tenta angariar votos com o velho discurso de “dos males, o menor” e com a ideia de que eles continuarão a revolução. “Não votaria nunca num ex-ministro de Mubarak. Acho que Mursi é a única opção para qualquer eleitor egípcio sensato”, disse o professor universitário Saleh Hassan.
Sandro Fernandes
Mubarak e membros do antigo regime pendurados em frente à principal mesquita de Alexandria
Do outro lado, um ex-ministro do regime de Mubarak, que apesar de gerar insatisfação de uma grande parcela da população, ainda se apresenta como uma opção de estabilidade e segurança. “Esta revoluçao só foi boa para que as pessoas lembrassem que o Egito existe. Estamos há mais de um ano sem turistas, sem investimentos, sem dinheiro. A praça Tahrir agora é um local de desabrigados. Não precisamos de mais revolução”, desabafa Mohammed Saif, gerente de um hotel no centro do Cairo.
O medo de que o Egito se transforme em um Estado aos moldes do Irã também é recorrente. “Sou muçulmana e não tenho nada contra a Irmandade, mas sempre vem à minha mente o exemplo do Irã. O Egito era um país muito mais aberto há 50 anos e agora já somos bastante conservadores. Se ganha Mursi, o que nos espera?”, indaga-se a jovem estudante de Psicologia Fátima Osman.
No último mês de abril, a Irmandade Muçulmana enviou uma delegação aos Estados Unidos com o objetivo de acalmar a Casa Branca, temerosa de um avanço islamista no Oriente Médio. Os membros da Irmandade apresentaram a organização como “um grupo que tem como objetivo principal devolver a dignidade e a esperança do povo egípcio, além de promover a democracia”.
Os países do Golfo Pérsico também parecem estar ansiosos com os resultados das eleições do país mais populoso e influente do mundo árabe. O medo da “exportação da revolução”, como a imprensa cunhou a possibilidade de que os protestos chegassem à região do Golfo, é oficialmente negada, mas faz parte da preocupação política dos líderes da zona, principalmente da Arábia Saudita.
Mohammed Mursi revelou recentemente que caso ganhe as eleições, convidará como vice-presidentes dois candidatos que perderam no primeiro-turno – Hamdin Sabahi e Aboul Fotouh. Shafiq insiste em seu discurso que a era Mubarak acabou e que não há possibilidade volta atrás.
Mursi tem a vantagem de poder contar com votos de cidadãos que conhecem a Irmandade Muçulmana e que não compareceram às urnas no primeiro-turno. E poderia contar também com o voto útil de eleitores que boicotaram a primeira etapa de votação, decepcionados com o caminho da revolução, mas que preferem eleger um candidato islamista a colocar um membro do antigo regime no poder. “Não acredito que o candidato vencedor fique muito tempo no poder. É só um momento de transição. Pode ser qualquer pessoa que não represente o antigo regime”, observou o arquiteto Ahmed Maher.
Ahmed Shafiq conta com o medo da importante minoria copta (cristãos do Egito) de uma possível vitória islamista. Os coptas representam 10% do eleitorado e provavelmente seguirão a recomendação do alto clero da Igreja Copta e votarão no ex-premiê
Repressão
Um dia antes da decisão da Suprema Corte Constitucional que pode mudar os rumos das eleições egípcias, o ministério da justiça aprovou um decreto que autoriza os oficiais da inteligência militar e da polícia militar a prenderem civis. A lei poderá ser aplicada para “crimes que lesem o governo”, “posse de armas”, “destruição do patrimônio público e de monumentos históricos”, “obstrução do tráfico” e “greves em instituições de serviço público”.
O decreto foi publicado em diário oficial nesta quarta-feira e recebeu críticas das principais organizações de direitos humanos. “A SCAF (Conselho Supremo das Forças Armadas) está por trás de tudo isso. Não temos um sistema judiciário independente e estas eleições são um teatro”, explica a ativista de direitos humanos Youmna El-Khattem.
O novo presidente encontrará um país com 40% de analfabetos (incluindo os funcionais), 35% de pessoas abaixo da linha da pobreza e uma economia que já não conta nem mesmo com os ingressos do setor do turismo. “O slogan ‘O Islã é a solução”, da Irmandade Muçulmana, não sustentará por muito tempo a popularidade de Mursi e os islamistas terão que provar na prática a habilidade para governar o país – tarefa quase impossível diante da situação na qual o país se encontra. E se Shafiq ganhar, vamos ter uma guerra civil no país”, explica a analista política Dina Shehata do Centro de Pesquisa Ahram.