Agência Efe
A decisão do governo cubano de liberar viagens ao exterior sem necessidade de permissão é uma das mais recentes medidas anunciadas dentro do programa de reformas iniciadas no mandato do presidente Raúl Castro. De acordo com a maioria dos intelectuais brasileiros consultados por Opera Mundi, as reformas contribuem para fortalecer o processo revolucionário e reciclar a economia.
Para o teólogo Frei Betto, trata-se de uma medida muito positiva, que poderá aprimorar o socialismo cubano, historicamente “condicionado pelo bloqueio dos Estados Unidos e pela influência da União Soviética”. Segundo ele, a “estatização excessiva” passou a prejudicar a economia e favoreceu o absenteísmo. Assim, Raúl, “após ampla consulta à população – não noticiada suficientemente no exterior –, decidiu implementar uma série de reformas para aprimorá-lo”. Entre elas, enumera o teólogo, estão a economia mista, a propriedade privada no setor agrícola e em pequenas e médias empresas e a abertura para o investimento estrangeiro na infraestrutura do país.
O escritor Fernando Morais, autor de “Os últimos soldados da Guerra Fria” (Cia. Das letras, 2011, 416 páginas), que trata dos contraterroristas de Cuba infiltrados nos EUA, acredita que a medida, do ponto de visto histórico, é “extremamente radical” se levado em conta o relacionamento entre a ilha e os EUA, cuja imposição de um pesado embargo econômico já dura 50 anos.
“A desestatização de vários setores da economia cubana, que retornaram à atividade privada, assim como a liberação do comércio de imóveis residenciais, já revelavam que o governo não ia realizar apenas mudanças cosméticas, mas mergulharia mais profundamente”, pontuou.
NULL
NULL
O escritor afirma que chegou a fazer quase 20 viagens à ilha para o livro. Na oportunidade, pôde presenciar a implantação das primeiras reformas de Raúl e o impacto sobre os cubanos – tanto os da ilha quanto os que fazem parte da comunidade de exilados da Flórida.
Reprodução
Morais lembra que há razões históricas para que a legislação fosse tão rígida até os dias de hoje. “Há meio século, os EUA declararam guerra à Revolução Cubana. Não a guerra convencional, mas uma secreta e ilegal, que promoveu agressões militares, econômicas, diplomáticas e políticas contra Cuba. Organizou, patrocinou e executou atentados que tiraram a vida de milhares de inocentes”, afirmou.
Ele lembrou que o endurecimento às saídas é resultante, principalmente da “Operação Peter Pan”, um complô organizado pela CIA e pela Igreja Católica dos EUA, que retirou de Cuba 14.048 crianças e adolescentes, muitas delas levadas para albergues norte-americanos.
Para Osvaldo Coggiola, professor de História Contemporânea da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), as mudanças favorecem a desigualdade social que ficará cada vez mais evidente entre os que podem viajar para o exterior e os que não têm essa possibilidade. “O impacto é limitado às pessoas que possam financiar passagens e estadias no exterior e, principalmente, àqueles que têm família nos EUA, que podem enviar dinheiro a Cuba livremente (outra medida relativamente recente) para financiar as passagens e outros gastos”.
Coggiola acredita que esta medida, assim como outras reformas organizadas pelo governo, como a liberação de compra e venda de automóveis e casas, acabam por introduzir tipos de “mecanismos de mercado” que, por trás deles, levam à acumulação de capital. “Em nome da ‘atualização’ do modelo econômico cubano se abre a via para concessões crescentes ao capital externo e para diversas vias de acumulação interna de capital”, que acabam, em sua opinião, por dar aos envios de dinheiro vindos principalmente de Miami [principal centro de dissidente no exterior] um poder de desestabilização econômica.
Segundo ele, a dependência cada vez maior do setor turístico faz com que aumente a importação de alimentos para o consumo nesse setor, bloqueando o desenvolvimento agropecuário do país – e, como consequência, eleva o desemprego.
Para Coggiola, essa abertura ainda não abrange medidas de abertura políticas, fundamentais para o bom funcionamento da Revolução Cubana. “Existem na ilha forte tendências para a deliberação política entre estudantes e setores de trabalhadores. A liberdade sindical e política são reivindicações fundamentais, em Cuba, para lutar por uma saída socialista. O destino da Revolução Cubana está nas mãos (e sob a responsabilidade) de todos os trabalhadores da América Latina”. A abertura nesse aspecto é necessária, segundo ele, para que a revolução ainda contemple uma alternativa socialista em seu horizonte, e precisa ser contemplada nas reformas.
EUA
A iniciativa do governo cubano, na visão de Frei Betto, não agradou ao Departamento de Estado dos EUA. “Os cubanos não dispõem de renda suficiente para fazer turismo no exterior. Aqueles que viajam o fazem custeados pelo governo – como esportistas ou o Balé Nacional de Cuba – ou por quem os convida. Isso significa que os cubanos residentes nos EUA gastarão dólares para custear as viagens de seus parentes e amigos que moram em Cuba. E há o risco de muitos não quererem retornar ao país de origem. (…) O que significa uma liberalização do regime cubano se constitui numa dor de cabeça para os EUA, que sempre acusou Cuba de não permitir viagens ao exterior de seus cidadãos”.
Para ele, o governo dos Estados Unidos será obrigado a rever sua política em relação a Cuba, sobretudo no quesito migração. “Imagino as filas que se formarão à porta da delegação norte-americana em Havana, que concede os vistos, e uma ironia histórica: serão os EUA que passarão a negar vistos de saída aos cubanos, impedindo-os de entrar”.
Agora, segundo Morais, o próximo passo deve ser dado pelos EUA. “Alimento a expectativa de que, se for reeleito – e, portanto, não precisar mais beijar a mão dos coronéis da máfia cubana de Miami –, o presidente Barack Obama pode pôr fim ao bloqueio. Afinal, já está passando da hora dele fazer jus ao Prêmio Nobel da Paz que recebeu”, disse.