A Marche du Grand Paris (Marcha da Grande Paris), que no período de 7 de setembro a 5 de outubro percorreu a capital francesa e o seu entorno, num ato de mobilização a favor da liberdade de circulação e de instalação dos imigrantes, teve o término pretendido: a entrega de uma carta reivindicatória no Palácio do Eliseu, residência oficial do presidente François Hollande.
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O documento, que não leva a assinatura pessoal de nenhum dos participantes da Marcha, mas sim o registro da UNSP (União Nacional dos Sem Papel), principal representação maior dos estrangeiros que vivem na França e não dispõem de autorização para permanência, foi depositada no final da tarde do último sábado (05/10) por quatro integrantes da entidade.
“É a primeira vez que um grupo de sem documentos chega tão longe”, comemora Faouzi Dhaouadi, um dos tunisianos que integram a UNSP, para quem a entrega da carta – que não foi feita diretamente nas mãos do presidente, mas em local apropriado no Palácio para o recebimento deste tipo de correspondência – “representa um enorme passo”.
Luciano Fogaça/Opera Mundi
Grupo concluiu marcha de um mês e que passou por 50 cidades no último final de semana
Dhaouadi informou que a UNSP seguirá avaliando o trabalho que foi desenvolvido ao longo dos últimos 30 dias e se preparando para a “Marche de l’Égalité” (Marcha da Igualdade), prevista para 7 de dezembro.
A seguir, leia carta na íntegra.
UNIÃO NACIONAL DOS SEM PAPEL (UNSP)
A François Hollande, presidente da República,
Senhor Presidente da República,
Nós, sem documentos e imigrantes, agrupados na UNSP, em marcha na região metropolitana de Paris desde o dia 07 de setembro, vimos pela presente vos explicar a razão dessa caminhada comemorativa em torno do 30º Aniversário da Marcha pela Igualdade, e comunicar nossas preocupações e nossas expectativas. Hoje, 5 de outubro, chegamos a Paris e estamos aqui no Palácio do Eliseu para expressar com nossa viva voz as nossas demandas e as nossas propostas.
Nós escolhemos para percorrer o espaço que agora é conhecido como “A Grande Paris” porque as caminhadas que nos levaram, primeiro, à reunião dos chefes de Estado africanos, em Nice, em 2010, promovida pelo vosso antecessor; ao Fórum Social em Dakar, em 2011; ao Parlamento Europeu, em 2012, e finalmente ao Fórum Social em Tunis, este ano, nos fazem sentir hoje a necessidade de falarmos com a mais alta autoridade da França. Isso ocorre porque depois de um ano e meio do socialismo no poder é intensa a nossa expectativa em relação à mudança anunciada, a qual, acreditamos, diz respeito também às condições de vida e trabalho para os imigrantes sem documentos. Além disso, estamos conscientes de que a construção da Grande Paris* faz parte do nosso caminho, assim como a construção e a defesa da França fizeram no dos nossos pais. Logo, estamos preocupados com as nossas famílias e com o futuro das crianças.
Ao longo deste trabalho, que chega hoje à sua quarta e última semana, fomos muito bem recebidos tanto pela população local quanto pelas prefeituras dos municípios pelos quais passamos, salvo algumas exceções que queremos esquecer. A meta que essencialmente estabelecemos para nós mesmos foi concluída: fazer conhecer os sem documentos e imigrantes para extinguir o medo e as ideias falsas, para mostrar sua jornada desafiadora e suas condições precárias de vida; para mostrar que são atores plenos da sociedade, para apresentar a vitalidade dos bairros e subúrbios parisienses tantas vezes estigmatizados, injustamente.
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Pela voz do ministro do Interior, Manuel Valls, foi expresso que o tratamento destinado à nossa situação obedeceria dois princípios: o da “humanidade” e o da “firmeza”. Deste modo, nós compreendemos que seria dada uma atenção benevolente para a nossa grande dificuldade de regularização, ao mesmo tempo em que a lei seria respeitada. Nós, obviamente, concordamos que o equilíbrio seja realizado e que a lei seja justa. Mas, muitas vezes, encontramos mais “firmeza” do que “humanidade” (prisões decretadas de acordo com a aparência, retenção e expulsão), e a legislação CESEDA, pela qual estamos ansiosos que o parlamento se ocupe da elaboração e da promulgação, até o momento está substituída pela Circular Valls, de 28 de novembro de 2012. Mas esta Circular, acreditamos, prorroga a injustiça e a incoerência da Lei Pasqua de 1993. Injustiça, porque a última palavra na regularização fica a critério do comissariado da Polícia, o qual não disponibiliza um tratamento uniforme (o mesmo a um e a outro). Incoerência, visto que a maior parte da Circular evidencia o círculo vicioso, tantas vezes denunciado, a saber: para registrar um pedido de regularização deve-se comprovar um número substancial de salários recebidos ao longo de vários anos, cujos recibos de pagamento, para serem emitidos de modo legal, faz-se necessário que tenhamos documentos fornecidos pelo Estado francês. Sendo assim, o que acontece é que as empresas contornam a lei, contratam trabalhadores sem documentos, fornecem declarações falsas, e a administração tolera essas ilegalidades. Como não desejar então que vossa política quebre este círculo vicioso e satisfaça o maior desejo dos sem documentos: viver e trabalhar na França em pleno direito?
Luciano Fogaça/Opera Mundi
Se nos voltamos para o senhor, Sr. Presidente, é porque Vossa Excelência tem o poder de inspirar tal decisão, e também porque não queremos ficar frente a frente com o ministro do Interior, mesmo sendo ele o responsável pela nossa regularização. Nós queremos de fato que a nossa situação envolva todos os ministérios relacionados à nossa presença na França (Trabalho, Justiça, Saúde, Educação…). Além disso, temos que admitir que o ministro do Interior até agora não demonstrou qualquer capacidade para ouvir as nossas preocupações, o que tínhamos o direito de esperar dele. Seus comentários recentes sobre a incapacidade de algumas populações de se integrarem na França só fortaleceram as nossas dúvidas. Nós, na verdade, sentimos nas palavras do ministro o mesmo que sentem os nossos irmãos ciganos: estamos entregues ao desprezo e, infelizmente, a uma crescente xenofobia.
É por isso, Sr. Presidente, que vos pedimos para garantir a retirada da Circular Valls, e que a abertura dos trabalhos parlamentares sobre a reformulação da lei CESEDA dê origem a um texto à altura da nossa expectativa, confirmando desse modo a história e os princípios básicos da nossa República e do Partido Socialista. Assim como Vossa Excelência, nós acreditamos nos seus princípios fundadores, particularmente, os contidos no Artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em matéria de liberdade: toda pessoa humana pode se mover livremente para se estabelecer no país de sua escolha, e livremente para retornar ao seu. A Declaração, promulgada em 10 de dezembro de 1948, no Palais de Chaillot, é imprescritível e a sua universalidade nos diz respeito diretamente. É sob sua inspiração que pedimos liberdade de movimento e residência para imigrantes sem documentos, regularização de todos os imigrantes que estão atualmente sem documentos, remoção do Centro de Retenção Administrativa (CRA), suspensão das expulsões e respeito ao direito de asilo, acesso ao direito de voto, acolhimento dos ciganos e reconhecimento da igualdade entre imigrantes e demais cidadãos. Especificamente, nós pedimos o cartão de residente de dez anos para todos os imigrantes sem documentos, mesmo para aqueles que estão aqui há mais de uma década.
Que ninguém diga que isto seria abrir as comportas para um fluxo de imigração. A clandestinidade contribui igualmente, se não mais. Que não se diga, também, que esta não é a hora de adicionar precariedade porque se vive um tempo de crise e de desemprego. Todo mundo sabe que os trabalhadores imigrantes não concorrem com os trabalhadores nacionais nos trabalhos que realizam, ou seja, limpeza, construção, restauração, serviços pessoais. E, de acordo com dados oficiais, o saldo da nossa presença na França é bastante positivo.
Agradecendo a atenção que Vossa Excelência poderá dispensar para nossa carta e para os nossos pedidos, na esperança de que Vossa Excelência nos dê a honra de sermos recebidos e ouvidos no Eliseu, neste dia 05 de outubro, Sr. Presidente da República, pedimos que receba a expressão da nossa mais elevada consideração.
UNSP
29 de setembro de 2013, Montreuil (municipalidade vizinha à cidade de Paris).
*Grande Paris é um projeto que visa transformar a cidade de Paris e sua circunvizinhança em uma região metropolitana intitulada “Grande Paris”, cujo objetivo é se projetar como a metrópole mundial e europeia do século XXI, com significativos polos econômicos e uma expandida rede de transporte público. A UNSP acredita que para este projeto ser operacionalizado, em termos de infraestrutura, a França precisará da mão de obra imigrante, uma vez que boa parte dos estrangeiros que vive sem documentos no país atua no setor da construção civil, área com pouca presença de franceses.