Em 31 de março, o vice-diretor de operações da MSF (Médicos Sem Fronteiras), Mariano Lugli, havia anunciado que o surto de Ebola na África Ocidental representava uma “epidemia sem precedentes, de magnitude nunca antes vista”. Essa declaração estampou os noticiários internacionais e elevou a doença a um novo patamar de preocupação em escala global. Há exatamente um mês desde que a OMS (Organização Mundial de Saúde) confirmou a existência da atual epidemia, o vírus “ainda não está sob controle”, relata Lugli em entrevista exclusiva a Opera Mundi.
Joffrey Monnier/MSF
Epidemiologista da Médicos Sem Fronteiras explica para a população de Gbando o que é o ebola e como evitar a transmissão
Com um currículo de 20 anos na MSF, Mariano Lugli explica que já esteve envolvido em quase todos os surtos recentes de Ebola no continente africano. Entre fim de março e início de abril, o italiano esteve na Guiné para coordenar as ações da organização internacional médico-humanitária no local. No entanto, quando compara o atual surto com as outras epidemias do vírus, diz que se trata de um caso “muito particular”.
Desde o último dia 23, há pelo menos 197 casos confirmados do vírus, com um saldo de 122 mortes, segundo os mais recentes dados do Ministério da Saúde da Guiné. Uma lista da OMS aponta que, entre os 16 principais surtos de Ebola no continente africano de 1976 até 2008, houve 1.071 casos de pessoas contagiadas e um saldo de 1.530 mortos – o que representa uma taxa de fatalidade de 73,87%. Em casos extremos, com a epidemia do Congo em 1976, essa taxa atingiu o nível de 88% de fatalidade. Mas o que faz deste atual surto tão “particular”?
Particularidade da epidemia
Há pelo menos três grandes motivos que explicam a particularidade deste surto. O primeiro é a sua especificidade em nível geográfico. “Normalmente esse tipo de epidemia está circunscrito dentro de uma província ou de uma vila. Contudo, quando nós chegamos à Guiné, vimos que o vírus já tinha se espalhado até para outros países, como a Libéria”, conta.
“Agir em muitas zonas torna o trabalho mais complicado. Em relação às outras epidemias, este caso é mais grave no ponto de vista geográfico. Não podemos comparar ainda o número de mortos e casos confirmados, pois só teremos esses dados mais precisos no fim do surto. O que podemos dizer é: trata-se de uma epidemia muito grave”, completa.
Sam Taylor/MSF
Vista de um centro em construção para tratamento de ebola em Conacri (capital) no dia 10 de abril
Outro motivo importante que explica a particularidade deste surto reside no fato de que ele é inédito na Guiné. Apesar de ser pequeno, Lugli explica que o problema está na questão fronteiriça. “A epidemia começou nas redondezas de Guéckédou, na fronteira perto de Serra Leoa, onde temos casos suspeitos, e da Libéria, onde há confirmação de mortes pelo Ebola. O país não é grande, mas as pessoas se movimentam muito”, conta. Além desses países, Senegal, outro vizinho da Guiné, fechou sua fronteira terrestre no início de abril e suspendeu feiras semanais perto da fronteira para impedir a propagação da doença.
Finalmente, a terceira razão que justifica a especificidade deste caso reside na possibilidade de se tratar de uma variação inédita do vírus. Por enquanto, o que foi identificado no país pela organização médico-humanitária é “do tipo Zaire”, uma das cinco subgrupos da família dos Filoviridae (filovírus) que causam o Ebola. Contudo, Lugli aponta a possibilidade de existir um sexto e desconhecido subgrupo.
“No início, declaramos que se tratava do subgrupo ‘Zaire’, mas estamos analisando se é mesmo desta categoria; há a possibilidade de existir um novo subgrupo do Ebola”, explica. “Não é nada oficial ainda, pois há análises e pesquisas em curso nos laboratórios. Mas é possível que, ao fim desta epidemia, revelemos a existência de um novo subgrupo”, completa.
Desconfiança da população
Um dos principais dramas é que, em muitos casos, os habitantes desconfiam das ações de médicos e dos centros de saúde ao lidar com a epidemia. “A região florestal do sudeste da Guiné é uma zona que historicamente tem uma relação difícil com a capital (Conacri) e as autoridades centrais”. Somado a isso, Lugli aponta que a tarefa de comunicação e de sensibilização dos habitantes torna-se mais desafiadora na medida em que eles têm uma “antropologia medicinal” própria para lidar com doenças. “Há uma forte medicina local tradicional e uma dinâmica cultural que não é fácil de compreender para conseguir passar nossas mensagens de modo rápido e eficiente”, diz.
Mariane Roccelo/ Opera Mundi
Apesar de pequena, Guiné teve grave epidemia, pois vírus se espalhou para a região da fronteira com Serra Leoa e Libéria
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“Há rumores, por exemplo, que nós retiramos e tomamos para nós os órgãos das pessoas mortas nos centros de isolação. Todo tipo de boato faz com que nosso trabalho seja mal interpretado”, explica. “A única coisa que podemos fazer é trabalhar com as autoridades locais e ver quais são as pessoas que possam passar de melhor forma a nossa mensagem para instruir e explicar a expansão da doença. Essas são as dificuldades de lidar com essas comunidades que ameaçam”, completa o italiano, aludindo ao caso em que habitantes jogaram pedras em médicos da organização nas últimas semanas, na cidade de Macenta.
No entanto, o vice-diretor relata que o problema de aceitação pela comunidade não é apenas na Guiné e que o exercício da compreensão da doença em diferentes culturas é uma tarefa fundamental do profissional da saúde. “Efetivamente, tivemos um problema semelhante em Angola de 2007, quando houve um surto de uma febre hemorrágica semelhante ao Ebola. É algo que conhecemos, mas não é fácil quando a doença não é conhecida pela população”, conta.
“Infelizmente, há pacientes que estiveram em contato com vítimas, então, temos que dar entrada no centro de internação para supervisioná-los mesmo quando entram com uma boa saúde. Contudo, eles acabam morrendo lá, o que agrava a desconfiança”, acrescenta.
A prevenção e a importância do diálogo
As tarefas de rápida intervenção, sensibilização e de prevenção por meio do diálogo com a população são essenciais para conter o surto. De acordo com o vice-diretor de operações, a primeira ação para conter a epidemia é o serviço de isolamento dos pacientes contaminados para, em seguida, fornecer um tratamento dos sintomas deles. Todo cuidado é pouco para equipe de médicos, pois há grande perigo de contrair a doença.
Amandine Colin/MSF
Enfermeira dá analgésico para paciente de 12 anos que está em ala de isolamento por causa do Ebola
Vale ressaltar que o vírus do Ebola não tem cura ou vacina, tendo como tarefa médica primordial o alívio do sofrimento. Trata-se de uma doença grave cuja taxa de mortalidade pode chegar a 90%. Entre os sintomas, destacam-se febres altas, dores violentas, náuseas, vômitos e hemorragias. No entanto, as chances de sobrevivência dos pacientes aumentam se eles receberam cuidados adequados, incluindo hidratação constante e tratamento para infecções secundárias.
Segundo a OMS, este vírus está entre os mais contagiosos e mortais entre os humanos. Entre as principais vias de propagação, o Ebola se transmite por contato direto com o sangue, os fluidos ou os tecidos dos indivíduos infectados. Nesse sentido, para evitar que haja contaminação, os familiares são impedidos de tocar os corpos dos falecidos. “Quando eu estive na Guiné eu vi claramente o costume que as pessoas têm de tocar nas pessoas mortas nos rituais funerários. Como a contaminação se dá pelo contato físico, isso multiplica a propagação da doença”, relata Lugli.
Com o intuito de prevenir, ele explica que é igualmente essecial criar uma lista das pessoas que estiveram em contato com os doentes. “Devemos segui-las por 21 dias, que é o período de incubação do vírus, e observá-las para poder dizer com toda certeza que não foram contaminadas”, argumenta. Ao mesmo tempo é preciso identificar as zonas mais atingidas para realizar ações de sensibilização da população.
Amandine Colin/MSF
Enfermeira da MSF explica para médicos de Guéckédou o que os profissionais podem fazer para protegerem pacientes e a si mesmos
As diretrizes da epidemia
De acordo com Mariano Lugli, o surto deve durar entre 2 e 4 meses, mas não há como prevenir com exatidão como o quadro irá evoluir. “Repito: trata-se de uma epidemia particular. Não seria de se espantar que dure um pouco mais tempo, mas é difícil dizer”, salienta. Sobre o risco de a epidemia se espalhar para a Europa ou até para o Brasil durante a Copa do Mundo, o funcionário da organização humanitária ressalta que essas possibilidades são “limitadas”.
Como não há de fato controle do surto, pois há muitos casos sendo diariamente confirmados, é preciso esperar e apostar nas medidas de prevenção e conscientização da população por meio de um diálogo pautado no respeito, capaz de fortalecer a confiança entre as organizações humanitárias e as populações atingidas. “Não há um pico de aumento nem em um pico de redução. Há pessoas que conseguem sair e são curadas e gente que infelizmente morre. Não há uma redução total. Neste momento, ainda há casos suspeitos e imediatamente isolados”, explica. De acordo com o Lugli, a epidemia está mais concentrada em Guéckédou e Conacri (capital). “Como agimos rápido e trabalhamos em equipe, conseguimos conter a cidade de Macenta, que apresenta cada vez menos casos”, comemora.