O ebola devasta o oeste africano. Vírus que se manifesta rapidamente e possui sintomas agressivos, como a febre hemorrágica, o surto, iniciado no começo de 2014, na Guiné, tem na precariedade do sistema de saúde o seu maior aliado.
Itens que em outras nações são consideradas mínimos para a chamada boa prática médica, como aventais, luvas e máscaras, faltam na maior parte dos centros de saúde, boa parte deles, improvisados, nos países que sofrem com o ebola: Guiné, Libéria, Serra Leoa, Nigéria e Senegal. A República Democrática do Congo, no centro da África, também sofre com o vírus, que já matou mais de 30 pessoas, nos últimos dias.
“Tanto é que uma parte significativa dos contaminados são profissionais da saúde”, afirma o médico infectologista da Unicamp, Rodrigo Angerami, em entrevista à Ansa.
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Surto de ebola na África Ocidental é considerado o pior já registrado na história do continente
De acordo com a entidade, a epidemia do vírus, identificado oficialmente em 1976, é a maior e mais grave dos últimos 40 anos. O surto atual também foi responsável pela contaminação dos primeiros não africanos. Para a ong Médicos sem Fronteiras (MSF), que está na linha de frente do combate ao surto, o “mundo está perdendo a batalha para o ebola.”
A precariedade do sistema de saúde é, para o sociólogo Acácio Almeida, um problema crônico e somente lembrado fora da África em situações como a atual. Segundo Almeida, desde o processo de independência da maior parte dos países africanos, entre as décadas de 50 e 70 do século passado, as nações sofrem com medidas estipuladas pela comunidade internacional, liderada pelos países ricos.
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“Depois de se tornarem independentes, em conflitos longos e que afetaram suas estruturas, estes países foram obrigados pelo sistema financeiro a pagar suas dívidas, ao invés de usar estes recursos em prol da reconstrução e estruturação de suas instituições, como as de saúde”, explica à Ansa o especialista em história africana, referindo-se aos tratados liderados por instituições como as Nações Unidas (ONU) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) a respeito da desvalorização das moedas nacionais e o pagamento de dívidas externas.
“Todo este processo, somado a medidas como a chamada Iniciativa de Bamako, na década de 80, quando a maior parte da saúde tornou-se privada, aumentou o esfacelamento deste sistema, que já era precário”, explica Almeida.
Um olhar mais específico para os países afetados pelo surto atual deixa mais evidente os motivos para a disseminação da doença. Guiné, Serra Leoa e Libéria passaram por guerra civil recente e estão ainda mais sensíveis aos estragos causados. “Ainda que nos últimos anos, o continente tenha recebido somas significativas, o sistema de saúde ainda é muito precário. Nestes países, grande parte do capital foi investido em guerras, não na saúde”, diz o sociólogo.
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Outro motivo que deve ser levado em conta, segundo Angerami, é o desenvolvimento da mobilidade das populações. Fatores amplos como mudanças econômicas , aumento da distribuição de novas tecnologias de transporte e comunicação e até mesmo tensões político-sociais acarretam em um maior deslocamento de indivíduos entre fronteiras. A África tem sofrido com a debandada de profissionais da área de saúde, que migram em busca de melhores condições de trabalho.
“As pessoas se deslocam cada vez mais rápido. Então, mesmo que os sintomas do ebola apareçam rapidamente, indivíduos podem transportar o vírus para outras localidades”, diz o médico infectologista. “Se antes, os surtos do ebola eram circunscritos a grupos pequenos, de centenas, mas com letalidade de 80%, 90%, na atual epidemia a contaminação é muito maior, atingiu milhares de indivíduos e mesmo com uma letalidade menor, de 70%, existe um número maior de óbitos”, explica.
Outro obstáculo encontrado pela OMS no combate ao ebola são fatores culturais. Em comunicado oficial, a entidade citou questões como famílias que escondem pessoas contaminadas em casa, o medo do estigma e rejeição social após a contaminação e até mesmo a negação da doença são algumas resistências enfrentadas pelos profissionais da saúde no oeste africano.
Segundo a OMS, os rituais funerários em algumas localidades dos países têm sido grandes vetores de disseminação da doença. Para Almeida, elementos como estes não podem ser tratados de forma simplista. “A transferência de fluídos está na base das sociedades. Se o indivíduo não puder mexer no morto, ele coloca em risco sua própria ancestralidade, por exemplo. Não podemos tratar isso na vala cultural comum, com medidas policiais, isso não resolve”, afirma o sociólogo.
“Acho que esta epidemia é um aviso mesmo. Uma clara demonstração de como é o grande o abismo estrutural entre estas nações em relação a outros países do continente, e principalmente em relação a grande parte do mundo. Por que é preciso lembrar que o ebola ataca os pobres destes países africanos. A classe média, a elite, não estão sofrendo com este surto”, afirma Paola Marchesini, médica sanitarista, especialista em Malária, em entrevista à Ansa.
OMS
Mapa mostra os lugares com maior transmissão do ebola
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Contra-ataque lento?
No comando da luta contra o ebola, a OMS recebeu críticas por uma suposta demora em tomar medidas de controle do surto, que teria surgido no início deste ano. A entidade anunciou o problema em março, quando centenas de pessoas já haviam morrido na Guiné. Problema, que segundo o infectologista, não pode ser apontado apenas como negligência. “Claro que se a OMS tivesse tomado medidas mais precoces, possivelmente o surto seria minimizado. Mas é necessário saber como são os sistemas de detecção e informação nestes locais. Talvez a qualidade da informação não tenha sido adequada”, diz o Angerami.
Um dos críticos foi o médico belga Peter Piot, que identificou o ebola em 1976, no Zaire, atual Congo. Para ele, a OMS deveria ter sido mais ágil em perceber a potencialidade desta epidemia. Além disso, o belga defendeu que os tratamentos convencionais do ebola deveriam ter sido substituídos mais rapidamente pelo uso de medicamentos ainda em fase experimental, como o ZMapp, no tratamento dos infectados.
Em mais uma medida polêmica, a OMS liberou o uso deste medicamento, no último dia 15. O ZMaap foi usado com sucesso nos tratamentos de dois missionários norte-americanos, curados do ebola. No entanto, um padre espanhol e um médico na Libéria também receberam o medicamento, mas acabaram morrendo.
Na última quinta-feira, a OMS emitiu nota anunciando a aceleração excepcional de testes com mais oito tratamentos e duas vacinas, todos experimentais, para combater o ebola até o final de 2014. No mesmo comunicado, admitiu que em situação normal, estes medicamentos demorariam 10 anos para serem disponibilizados.
“As denúncias sobre a liberação foram um pouco demasiadas, referindo-se ao histórico de que a África é um imenso laboratório para testes de medicamentos. É, mas esse caso é diferente, é uma questão muito séria. Há uma epidemia e existe um medicamento com potencial para ajudar neste combate “, diz a médica sanitarista.
A questão emergencial também faz Angerami ter opinião semelhante sobre o assunto. “Em outras circunstâncias esses medicamentos não seriam usados.” No entanto, os médicos ponderam sobre a eficácia de um combate baseado em novos medicamentos. A análise é baseada nas poucas experiências com o ZMaap, na letalidade demonstrada pelo surto e o custo para a produção das novas drogas.
“Tudo indica que as respostas são seguras. Mas também houve mortes após o tratamento com o medicamento experimental. Temos que avaliar o que é melhor. Investir nessas drogas ou garantir uma melhor infra-estrutura de atendimento?”, questiona o médico, lembrando que os pacientes norte-americanos curados com o ZMaap, Kent Brantly e Nancy Writebol, foram tratados nos Estados Unidos, “em hospitais com a melhor estrutura”, enquanto o médico Abraham Borbor, que morreu após uso do medicamento, foi tratado em um hospital em Monróvia, capital da Libéria. “Onde foi a contribuição da droga e onde foi a contribuição da assistência?”
Crítico do uso de medicamentos experimentais contra o ebola, Almeida relaciona as medidas emergenciais tomadas pela OMS a um histórico olhar externo aos problemas em território africano. “Apesar do viés humanitário, todas essas discussões sobre saúde global possuem um caráter muito mais de segurança. O ebola revela bem essa faceta, o medo surge quando há possibilidade de povos não africanos sofrerem”, afirma o sociólogo, que elenca outras doenças que afligiram e ainda afligem a África, como a Malária e a Aids e que apesar de ações “globais” de urgência, não evitaram a disseminação pelo mundo. “O combate contra essas doenças não deve ser usados como exemplo”.
Epidemia mundial e o Brasil
Com um custo de combate estimado pela ONU na última semana, em U$ 600 milhões (R$ 1,3 bilhões), a OMS acredita que o surto do ebola só será controlado em seis meses. Tom Kenyon, diretor dos Centros de Controle de Doenças para a Saúde Global dos EUA, afirmou, em entrevista a imprensa norte-americana, que a epidemia está fora de controle, temendo a perda da oportunidade para bloquear o ebola. A afirmação foi feita pouco depois da divulgação do terceiro caso de um norte-americano, o médico Rick Sacra, contaminado com o ebola. Quatro norte-americanos já foram contaminados.
No Brasil, o governo brasileiro afirmou estar preparado para tratar possíveis indivíduos que cheguem ao país com o ebola e que não há risco de um surto em território nacional. “Temos o mínimo de estrutura médica no país, diferente da África. Além disso, as circunstâncias são outras, existem diferentes valores culturais e religiosos e outra compreensão de riscos envolvidos. Acredito que seja possível existirem casos importados, não só no Brasil, mas em outros países. Mas para um surto, as chances são mais do que remotas”, afirma Angerami.
Amandine Colin/MSF
Enfermeira da MSF explica para médicos de Guéckédou o que os profissionais podem fazer para protegerem pacientes e a si mesmos
“Os sintomas do ebola são muito agressivos e rápidos. Qualquer pessoa que sinta estes sintomas, logo será internada e isolada”, afirma Paola, que participa das reuniões do governo brasileiro para discussão do ebola. “Creio que o maior problema, não só na África, é o depois. Já que, mesmo curado, o indivíduo fica dois meses com o vírus incubado e pode transmiti-lo sexualmente. Isso é que precisa ser discutido”, explica a médica. “Se falássemos de um vírus transmitido por vias respiratórias, sim, estaríamos conversando sobre uma epidemia de milhões de pessoas”, diz o infectologista.
Segundo Almeida, o atual surto do ebola é uma chance clara para que haja progresso na internacionalização do debate sobre o continente africano, buscando novas alternativas. O pesquisador não vê uma solução rápida para a epidemia do vírus e acredita na necessidade de ações mais concretas e menos paliativas de órgãos como a ONU.
“Apesar dos grandes investimentos e doações e o paralelo crescimento econômico dos países, isto não está sendo revertido ao desenvolvimento social. É necessário, além de acordos entre entidades internacionais e governos, a participação da sociedade civil das nações africanas”, acredita.
Para Angerami, as deficiências expostas pelo surto do ebola são ainda mais abrangentes. “Mostra que precisamos compreender melhor os determinantes ambientais, comportamentais e geográficos. Existem alterações climáticas e ecológicas e isso também afeta a circulação das doenças”, afirma o médico que crê num equilíbrio de estruturas para minimizar problemas como este. “É necessário ter uma capacidade de vigilância no âmbito global, com condições mínimas de resposta. O ebola é mais um exemplo que o mundo globalizou-se como um todo, inclusive nos problemas de saúde”.