“Yo soy Nisman”, “Eu sou Nisman”. Nas ruas de Buenos Aires, dezenas de pessoas colocaram estas palavras em cartazes e bandeiras argentinas, agitando em manifestações e recuperando a frase — “Je suis Charlie” —, popularizada após os atentados em Paris contra a revista Charlie Hebdo em 7 de janeiro. Neste caso, entretanto, o que os argentinos exigem é a verdade sobre a morte de um promotor de Justiça.
Na madrugada de 18 de janeiro, o corpo de Alberto Nisman, 51 anos, foi encontrado no banheiro de seu domicilio, cuja porta estava trancada por dentro, deitado em uma poça de sangue perto de um revólver de calibre 22 milímetros. A morte aconteceu poucas horas antes do seu comparecimento ao Congresso, onde, tinha assegurado, iria fazer revelações explosivas sobre o atentado contra a sede da Amia (Associação Mutual Israelita Argentina), que causou a morte de 85 pessoas em julho de 1994.
Agência Efe
Exigindo explicações sobre a morte de Nisman, argentina segura cartaz, cujo slogan faz referência ao caso Charlie Hebdo: “Yo soy Nisman”
Nomeado em 2004 como chefe de uma unidade especial criada para investigar o crime, Alberto Nisman havia interrompido prematuramente na semana passada suas férias na Europa. O motivo: voltar para Argentina para acusar a presidente Cristina Kirchner e o chanceler Héctor Timerman de encobrir iranianos, supostamente os mentores intelectuais do atentado. O promotor dizia possuir registros de grampos telefônicos demonstrando que o governo da Argentina havia concordado com uma troca de favores com o Irã: escondendo a responsabilidade dos políticos iranianos, seria beneficiado com assistência econômica e financeira, ajuda vital em tempos de crise.
“Se há um crime, é digno dos Assassinatos da Rua Morgue, que Edgar Allan Poe publicou em 1841″, diz o analista político Horacio Verbitsky, principal colunista do diário Pagina12. “Portas trancadas por dentro, apartamento no 13º andar, sem varanda, e um corpo bloqueando a porta do banheiro”, enumera ele antes de acrescentar: “apesar de tudo, não me apresso a dizer que é um suicídio, mas também não dá para concluir que é um assassinato. Tem que esperar a investigação”. A perícia revelou que não foram encontrados sinais de pólvora nas mãos do promotor. No entanto, isso não exclui a tese do suicídio, apontam os técnicos em medicina legal.
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A reação da presidente argentina só fez crescer a desconfiança da população. Sem nem ter expressado condolências à família, Cristina ainda sugeriu, via Facebook, que o promotor teria sido manipulado. “Isso confirmou, em partes, o que pensava a opinião pública, de que o governo não protegeu direito o promotor contra um risco de assassinato, ou inclusive que teve a ver diretamente com a sua morte”, diz Gabriel Puricelli, analista do Laboratório de Políticas Públicas em entrevista a Opera Mundi.
Trabalhando há dez anos na investigação sobre o atentado da Amia, Alberto Nisman tinha chegado à conclusão de que os autores intelectuais do crime eram membros do governo iraniano — agindo sob o auxílio de um integrante do Hezbollah. Depois de ter exigido (sem sucesso) do Irã a possibilidade de interrogar os suspeitos — alguns dos quais têm cargos altos no governo —, Buenos Aires assinou finalmente um memorando com Teerã criando uma “comissão da verdade” para cooperar na investigação. Apresentado por Cristina Kirchner como um “fato histórico”, o tratado nunca se concretizou, já que ficou bloqueado pelo Parlamento iraniano. Na Argentina, a oposição apontou o episódio como uma grande derrota da política externa do governo.
Agência Efe
Cartaz em mural em Buenos Aires demonstra apoio à presidente Cristina Kirchner
Suicídio ou assassinato, a morte de Alberto Nisman, após a sua volta inesperada de férias, ainda sem explicação, relançou um debate sobre o papel dos SI (serviços de inteligência) na Argentina. “A morte de Nisman provocou certa comoção porque existe a percepção que está relacionada com disputas no seio da Secretaria de Inteligência”, explica Gabriel Puricelli. “Nisman trabalhava na investigação da bomba na Amia em estreita colaboração com Jaime Stiusso, um alto diretor do SI recém removido do seu cargo. Especula-se que Stiusso pudesse ter influenciado a denúncia contra Cristina Kirchner. Ou, ainda, com a morte de Nisman”, completa. Para o analista, a tragédia “atualiza o debate sobre o rol dos serviços que não foram reformados desde a época da ditadura”.
Do ponto de formal, os SI são diretamente dependentes da Presidência, mas, bem ou mal, sempre mantiveram certa autonomia em relação aos governos. Suspeita-se, inclusive, que o setor de inteligência seja a origem de vários bloqueios nas investigações sobre o caso Amia.
A tensão entre o SI e Cristina Kirchner é sensível desde 2013, quando foi tomada a decisão, muito polêmica, de aumentar os recursos e os poderes do serviço de inteligência das Forças Armadas — tirando poder e diminuindo atribuições do SI civil, medida que foi vista como um sinal de desconfiança. Mais tarde, em dezembro passado, a teoria ganhou novo endosso quando o governo decidiu acabar com a hierarquia no SI e nomear Oscar Parrilli, político próximo de Cristina. O número dois do SI, por sua vez, vem da Campora, o movimento da juventude kirchnerista.
A proximidade entre Alberto Nisman e ex-membros dos serviços alimenta todas as teorias: vingança de agentes removidos? Manipulação política com a ajuda da mídia? Intervenção do governo? Suicídio quando ele percebeu a pouca consistência das provas contempladas? Hoje tido como herói pela população, o promotor já foi visto com menos simpatia, quando arquivos secretos vazados pelo WikiLeaks demonstraram que ele informava a embaixada dos Estados Unidos de todos os seus movimentos na investigação sobre o caso Amia. “Qualquer que seja a verdade, existe uma relação promíscua entre juízes e os serviços de inteligência. E isto tem que acabar”, conclui Horacio Verbitsky.