As noites são intermináveis em frente ao Landesamt für Gesundheit und Soziales (LAGeSo), o departamento de saúde e assistência social de Berlim, responsável pelo registro e atendimento dos refugiados que chegam à cidade. Ali, para os que esperam papéis, o tempo “não passa”, o atendimento “nunca acontece”, o ônibus “demora a sair”, o registro “sempre fica para outro dia”. Qual dia? “Ninguém sabe”, eles dizem, com ombros encolhidos.
A Alemanha recebeu, entre janeiro e agosto de 2015, mais de 250 mil pedidos de asilo. Um recorde para os últimos 23 anos, de acordo com o relatório do Ministério para Migração e Refugiados do país. No mesmo período, o governo tomou 152 mil decisões – um déficit de 100 mil somente neste ano. A máquina burocrática patina. O registro é lento para o volume de novos pedidos. Os esforços parecem correr contra um tempo que já expirou.
São 20h de quarta-feira (23/09), é começo de outono, faz 8ºC. O LAGeSo já encerrou o expediente e ainda há cerca de 200 pessoas do lado de fora, esticadas pelas calçadas escuras e alimentadas por doações. O frio chega de mansinho, tapeado por edredons, gorros e casacos pesados. Os voluntários sabem que a situação é insustentável. Em 30 dias, eles repetem a todo instante, o termômetro marcará 2ºC.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Voluntário serve café para solicitantes de asilo em Berlim
Mulheres e crianças já foram embora. Elas embarcaram no ônibus oferecido pelo governo e vão rumo a um dos abrigos da cidade. Por outro lado, homens batem o pé em clima de desconfiança e recusam a carona, ignoram a última chamada dos funcionários e seguranças. “Quer dormir? Entre no ônibus! Quer dormir? Entre no ônibus! Não quer ir? Fazer o quê”.
“Eu não entro, porque não sei quando vou ser atendido”, diz um afegão, 25 anos, que não quis se identificar. Ele está na Alemanha há 15 dias. “O abrigo fica a uma hora daqui. Depois é um problema voltar para cá. Como não sei quando vão chamar meu número, prefiro passar as noites aqui na rua mesmo.”
Ao seu lado, um homem de Bangladesh visivelmente bêbado cambaleava e tomava uma bronca de uma voluntária. “Bebida? Não pode! Você não tem documentos. Olha a polícia! Polícia por todo lado!” Fluente em urdu, o afegão interveio, sorridente. “O cara não tem o que fazer aqui, está deprimido e não pode beber?”. Paciente, ela tentou convencê-lo do contrário. Sem sucesso.
Ainda há muita gente que chegará a Berlim. Quase todos os dias há anúncios de novos trens vindos de Munique a caminho da capital alemã, com 450 a 500 refugiados. No último deles estava Alex Husan, que chegou pronto para mostrar serviço. Calçando luvas e com uma enorme mochila nas costas, o iraniano da cidade de Isfahan recolhia obsessivamente o lixo que já acumulava no chão.
Camila Alvarenga/ Opera Mundi
Quando se deu por satisfeito, passou a contar, em desabafo, que era perseguido no Irã por sua religião. Qual? “Essa aqui”, disse. Tateou os bolsos, olhou dentro da mochila, checou as meias. O rosto se contorceu em desespero. Durante a limpeza, ele tinha perdido o crucifixo que carregava no pescoço. “Olhe as minhas coisas”, afirmou, e saiu correndo.
Minutos depois, Husan apareceu entre os demais refugiados com os braços para o alto. O crucifixo, grande e brilhante, estava nas mãos. “Eu amo isso daqui. Amo. Aleluia!”, disse ofegante, com a voz enrolada, antes de embarcar no ônibus para sua primeira noite em um abrigo de emergência. Despediu-se extasiado com a possibilidade de viver na Alemanha. Quer trabalhar como garçom ou dar aulas de judô.
Um teto por uma noite
Às 22h, 7ºC, o último ônibus da noite partiu levando Husan e pelo menos mais uma dezena de idiomas diferentes. Ficaram para trás, nas calçadas, cerca de 150 pessoas, enquanto outras não paravam de chegar. Uma família de sérvios – pai, mãe e filho de 6 anos – estavam no chão. Outra família, desta vez bastante numerosa, se acomodava perto das cercas de segurança. Um grupo de jovens albaneses discutia em voz alta. Um rapaz do Mali, de apenas 17 anos, procurava orientação em francês.
Foi quando uma ativista postou no Facebook um pedido dramático de ajuda: “Alerta! Não existe mais abrigos de emergência para a multidão no LaGeSo. Berlim continua falhando. Quem conhece ginásios e proprietários de grandes imóveis e pode conseguir AGORA lugares para dormir? Quem pode abrir suas casas? Por favor, apareçam AGORA no LaGeSo, Turmstrasse 21”.
NULL
NULL
Começava assim o lento e difícil trabalho dos voluntários de encontrar quartos para os que ainda queriam dormir com conforto. Com a ajuda de tradutores, eles abordavam as famílias recém-chegadas. “Quantas pessoas são? Os alburgues já estão fechados. Vocês têm duas opções hoje: ficar aqui ou ir para um quarto privado aqui na região, na casa de um voluntário, para passar a noite. O que preferem?”.
A desconfiança de alguns e a demora para decidir tornavam o ambiente ainda mais tenso. “Isso é uma loucura!”, bradou um alemão alto, já de cabelos brancos. Sempre simpático, o voluntário estava cansado de esperar o garoto albanês sair do telefone. Os problemas de comunicação não são comuns, mas acontecem com mais frequência enquanto a noite avança.
O garoto albanês, de qualquer maneira, não era o primeiro da fila por um quarto. A família de sérvios tinha preferência. O menino já dormia nos braços do pai, que estava sentado no chão, fumava um cigarro atrás do outro e exalava uma tensão insuportável.
Por sorte, o post na rede social teve resultado quase imediato. Dentro de 15 minutos, uma caminhonete encostou e um casal jovem desceu. Eles trocaram cumprimentos breves com a família de sérvios e embarcaram para passar pelo menos uma noite mais confortável. Cinco minutos depois, o garoto albanês, que enfim saiu do telefone, também recebeu e aceitou a oportunidade de ficar com outro casal.
Roberto Almeida/ Opera Mundi
Recém-chegado em Berlim, Alex Husan comemora acolhida no abrigo de refugiados
A situação se repete, segundo voluntários, há semanas. Não há lugar para todos os refugiados e as condições de trabalho estão abaixo da média. A pressão aumentou e Dirk Gerstle e Dieter Glietsch, coordenadores e secretários do LaGeSo, emitiram uma nota à imprensa na quinta-feira (24/09) prometendo mais pessoal e melhorias imediatas na estrutura e na comunicação. Um alívio passageiro para um desafio que está apenas começando para a burocracia alemã.
O que mais precisa ser feito? Um rapaz albanês, 23 anos, que não quis se identificar, diz ter a resposta na ponta da língua. “Eu cheguei há um mês em busca de vida melhor. Quero trabalhar com qualquer coisa. Não aguento mais. Só quero que os alemães me digam logo ‘sim’ ou ‘não’. Se for um ‘não’, eu volto para casa no dia seguinte e a vida continua.”
Países balcânicos
De acordo com dados do governo, 22,9% dos registros de pedidos de asilo são feitos por sírios (52,8 mil), 16,3% são de albaneses (37,6 mil) e 13,3% são de kosovares (30,7 mil). Embora não seja tão evidente, o número de pedidos vindo de países dos Bálcãs supera com facilidade o número de pedidos de sírios, afegãos e iraquianos.
Além de albaneses e kosovares que, somados, superam o número de sírios, há 13 mil sérvios e 6,4 mil macedônios pedindo asilo. Como não vieram de países em guerra, suas chances de ficar na Alemanha são muito menores. De todos os solicitantes que chegaram à Alemanha entre janeiro e agosto de 2015, a maioria (62,7%) recebeu resposta negativa.
Camila Alvarenga/ Opera Mundi