Incontáveis flores, velas e bilhetes se acumulam nos locais dos atentados terroristas que a cidade de Paris sofreu há uma semana. Rachida Kabbouri prestava sua homenagem como tantos outros franceses na praça da República quando uma senhora bem maquiada a abordou educadamente: “Com licença, posso fazer uma pergunta? Eu gostaria de entender por que você continua a usar esse veu”. Kabbouri, empresária muçulmana de 39 anos e terceira geração de imigrante na França, sorriu diante da provocação e começou a explicar com calma suas razões culturais e políticas.
Amanda Lourenço/OperaMundi
Homenagem em frente ao La Bonne Biere, um dos locais atacados. Na placa se lê “Nós não temos medo”.
O assunto chamou atenção das pessoas próximas e rapidamente formou-se uma pequena multidão em volta de Kabbouri, que falava alto e defendia a importância desse tipo de pergunta: “Precisamos de diálogo sim, não desse muro de silêncio que existe entre franceses de origens diferentes. Precisamos entender uns aos outros”. Outras pessoas se meteram na conversa, um homem interviu afirmando que ela estava fazendo propaganda religiosa, outro discordou e várias pessoas começaram a brigar entre si. Câmeras de TV foram atraídas pela confusão e pouco depois a polícia chegou.
Casos corriqueiros como este mostram como a França anda sensível à questão muçulmana: há um esforço de união e aceitação, mas basta uma faísca e tudo pega fogo. “Nós somos vítimas duas vezes. A primeira como todos os outros franceses, correndo o risco de sermos atacados por terroristas, e a segunda por sermos automaticamente relacionados com esse tipo de comportamento agressivo”, argumenta Kabbouri.
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Rachida Kabbouri, francesa e muçulmana
Para Yanis Khalifa, porta-voz da associação Estudantes Muçulmanos da França (EMF), a prioridade no momento é a união: “O objetivo dos terroristas é exatamente dividir o país, é convencer a França de que seu inimigo é o Islã. Mas não há nenhuma verdade nisto. A imensa maioria dos muçulmanos se integra perfeitamente aos valores republicanos. Então nossa resposta e esse tipo de ataque deve ser conjunta”, defende.
A EMF publicou um vídeo de solidariedade às vítimas um dia depois dos ataques. Nos quase 3 minutos, estudantes muçulmanos aparecem com cartazes pretos com a hashtag #NousSommesUnis (nós estamos unidos). O vídeo já foi visto mais de 400 mil vezes e a esmagadora maioria dos comentários é de apoio. A hashtag foi criada pela associação Coexister, movimento de juventude interreligiosa.
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Teoricamente, a separação entre muçulmanos e terroristas pode acontecer mais facilmente do que na ocasião dos ataques contra a revista Charlie Hebdo, onde as vítimas foram escolhidas previamente e havia o possível argumento de provocação. “Desta vez os terroristas não selecionaram as vítimas, eles mataram muçulmanos, não-muçulmanos, brancos e negros sem fazer distinção”, diz Khalifa. “Esta é uma grande razão para estarmos todos juntos”, completa.
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Homenagem feita aos mortos no atentado à Paris, no dia 13/11, no café Bonne Biere
Na prática, entretanto, a união é mais complicada. H., 22 anos, francês de origem magrebina, afirma que as pessoas andam excepcionalmente desconfiadas: “Já fui revistado pela polícia depois dos atentados. Eles olharam pra mim, viram minha barba e já foram pedindo os documentos. Acho muito injusto”. Otimista, ele acha que ataques como esse não se repetirão: “Eles já conseguiram assustar todo mundo, já atingiram seu objetivo, não tem mais o que fazer. Só espero que as coisas voltem ao normal”, afirma.
Leila Al Saoud, estudante de 25 anos, também diz que o olhar das pessoas têm pesado mais ultimamente. “Hoje pensei duas vezes antes de sair de veu porque sinto que sou julgada. Mas não vou esconder quem eu sou só por causa de alguns mal-informados. As pessoas em volta de mim sabem que sou muito pacífica, não preciso pedir desculpas por algo que não fiz”, relata.
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Homenagens também foram feitos no Bataclan, a casa de shows que também foi vítima de um atentado no dia 13
De maneira geral, o clima na cidade ainda está bastante pesado. Os ataques continuam sendo o assunto principal em todas as rodas de conversa. Qualquer barulho atípico é motivo para desconfiança. Dono de um mini-mercado no bairro de Belleville, Jean Turkoglu, afirma que o movimento caiu: “As pessoas vão ao trabalho normalmente porque não tem jeito, mas quando elas podem evitar sair de casa, elas evitam. A loja registrou uma baixa considerável de vendas desde o último fim de semana”.
A apreensão é a mesma para todos os parisienses, em todos os bairros. J. Ercan, muçulmano atendente de uma lanchonete árabe, acha que o momento é de união e que os franceses sabem fazer diferença entre terrorismo e religião. “As pessoas entendem que os atentados são políticos, que isso tudo não têm nada a ver com o islã. Pra mim não mudou nada desde sexta-feira, a vida continua”, afirma.
Diversas mesquitas e estabelecimentos muçulmanos foram alvo de violências na França. Em Créteil, periferia de Paris, cruzes vermelhas foram pichadas na mesquita de Sahaba; Em Barentin, norte do país, a vitrine de uma lanchonete árabe foi quebrada com uma pedra; Em Pontarlier, leste do país, um presunto foi deixado na ponta principal da mesquita. A coabitação entre franceses e muçulmanos será uma peça fundamental nas próximas eleições e no futuro político do país, que corre o risco de abraçar o discurso de medo da extrema-direita.