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A primavera árabe foi uma ilusão?
SIM
Não sou daqueles que, preconceituosamente, supõem haver uma incompatibilidade entre democracia e mundo árabe. Mas, há tensões históricas que hoje comprovam o fracasso da tese, romantizada pela mídia, de “primavera árabe”.
Leia também o NÃO:
Emancipar uma sociedade é tarefa prolongada
Vejamos. Depois do colapso do Império Otomano e do fim dos protetorados europeus no pós-Segunda Guerra, surgiu no Egito o modelo autoritário de modernização (Gamal Abdel Nasser, com a queda do rei Faruk), que procurou silenciar a hierarquia muçulmana e se fundamentar nas Forças Armadas essencialmente laicas, a exemplo do que havia ocorrido com a Turquia, nos anos 1920, com Kemal Ataturk.
O modelo nasserista se espalhou rapidamente pela região, com o pan-arabismo frustrado da RAU (República Árabe Unida), entre 1958 e 1961, e a ascensão do partido Ba´ath no Iraque e na Síria.
Carlos Latuff
Negociação de soluções intermediárias entre grupos antagônicos não está ocorrendo, e é pressuposto para democracia
Esse modelo se enfraqueceu diante das derrotas militares para Israel e, um pouco mais tarde, com a Guerra Civil na Argélia (1991-2002), quando grupos islâmicos desafiaram a hegemonia discricionária da Frente de Libertação Nacional, vitoriosa na guerra de independência contra os franceses.
Eis que, na década de 1980, surge a “guerra santa”, no distante Afeganistão, auxiliada pelos Estados Unidos para a expulsão dos invasores soviéticos. Foi um sinal poderoso que, bem mais tarde, no momento oportuno, foi interpretado corretamente pelos grupos e partidos muçulmanos moderados, da Tunísia ou do Egito, e não tão moderados assim, na Síria e na Líbia.
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A simples citação desses países já nos fornece o mapa do malogro da chamada “primavera árabe”. É saudável a articulação para derrubar ditaduras pós-nasseristas. O problema é o que criar no lugar delas.
A democracia supõe a capacidade de negociar soluções intermediárias entre grupos antagônicos. É justamente o que não está ocorrendo. Na Líbia e na Tunísia, sem um Exército nacional verdadeiramente forte, o poder de pressão se pulverizou entre milícias, grupos religiosos e entidades da sociedade civil. No Egito, com Forças Armadas bem ou mal arraigadas na sociedade, as tentativas de islamização das instituições resultaram na deposição do presidente Mohammed Mursi e no banho de sangue estancado pela volta dos militares ao poder. E na Síria, apoiada pelo Irã e ao mesmo tempo hostilizada pela Turquia e pela Arábia Saudita, a Guerra Civil deixou de ser um problema interno para ganhar contornos regionais.
Leia também o argumento de Peter Demant:
Emancipar uma sociedade é tarefa prolongada
Vejam que esse quadro não espelha o simplismo confessional que procura interpretar o quebra-cabeça segundo a lógica de autodefesa e expansão dos interesses xiitas (associados aos alaouitas) ou sunitas. Estamos diante de um quadro generalizado de desorganização institucional. Depois da etapa do grito, chegou a etapa das armas, prevalecendo o poder dos mais fortes. O que viabiliza e de certo modo legitima a tutela sob a qual os militares conseguiram novamente submeter o Egito, país que hoje é o “mais comportadinho” da região.
Isso é primavera? Com certeza, não. É o prosseguimento, com novas formas de dogmatismo, do longo inverno que dissocia a democracia dessa região do mundo.
(*) João Batista Natali é jornalista, colaborador da Folha de S. Paulo, onde foi repórter por 38 anos. É professor de Ética na Faculdade Cásper Líbero e comentarista da TV Gazeta. Formado em jornalismo e filosofia, é mestre e doutor em semiologia.
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