No fantástico e conhecido mundo da literatura latino-americana do século 20, os ancestrais são, com frequência, invocados para auxiliar a narrativa. Assim também foi com o Prêmio Nobel de Literatura de 1982, Gabriel García Márquez (basta, para demonstrá-lo, lembrar o título de dois de seus livros: “A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada” e “Os Funerais da Mamãe Grande”), assim também é com o seu primeiro livro de memórias, “Vivir para Contarla” (Viver para Contar), lançado no início do mês nos países de língua espanhola, onde já vendeu 1 milhão de exemplares.
No livro, de 580 páginas, García Márquez, um estudante que decidira abandonar o curso universitário, está numa livraria que, por coincidência, se chama Mundo, quando vê entrar a mãe que há um bom tempo já não via. “Sou sua mãe”, apresenta-se ela, recém-chegada a Barranquilla, aos 45 anos, após onze gestações. Do mundo, a mãe o convoca para uma missão: vender a casa da família em Aracataca, onde Gabo viveu com os avós, até os 8 anos. A viagem é um reencontro do colombiano não apenas com esse período, mas também com a tradição que funda boa parte do universo de seus romances — como “Cem Anos de Solidão” e “Crônica de Uma Morte Anunciada”. Depois de voltar à sua aldeia, ele pode ser universal. “Agora, com mais de 75 anos bem medidos, sei que foi a decisão mais importante de quantas tive de tomar em minha carreira de escritor. Ou seja: em toda a minha vida.”
Essa é a primeira das explicações que ”Vivir para Contarla” dá para o nascimento do escritor García Márquez. A autobiografia, que trata de sua infância e de sua adolescência, é, na verdade, uma grande busca de sentido para o estranho percurso que o menino da costa caribenha da Colômbia decidiu seguir, fugindo do sonho inicial dos pais de vê-lo formado médico ou, no mínimo, advogado. A viagem a que a mãe o convoca também é a última tentativa da família de negociar uma solução de compromisso, uma última e vã tentativa de vê-lo voltar à faculdade de direito.
Aracataca já foi chamada de a Macondo de García Márquez. Embora isso não possa ser contestado por completo, a verdade é que suas referências, embora passem pela pequena cidade, não se esgotam, claro, nela. No retorno a Aracataca, ele vê urna placa com o nome cidade mítica que criou. O trem fez uma parada numa estação sem povoado, e pouco depois passou em frente de uma plantação de bananas, a única do caminho, “que tinha o nome escrito no portal: Macondo”: a dez minutos de Aracataca. “Essa palavra me havia chamado a atenção desde as primeiras viagens com meu avô, mas só adulto descobri que gostava de sua ressonância poética.”
A autobiografia de García Márquez parte, então, para a história de Aracataca, marcada pela presença da companhia United Fruit e de um massacre de bananeiros, e de seus avós e pais. Ao tratar do amor proibido entre seu pai, Gabriel Eligio, então telegrafista (mais tarde, seria um homeopata autodidata), e sua mãe, Luisa Santiaga, filha de um coronel que não queria essa aproximação, GarcíaMárquez conta como eles se correspondiam às escondidas: recordações que foram fundamentais para a composição do quinto romance do autor colombiano: “O Amor nos Tempos do Cólera”. García Márquez narra também “seu primeiro êxito literário”. Ainda não escre-via, nem o sabia: não passava dos 4 ou 5 anos, quando um amigo e companheiro de partidas de xadrez (intermináveis) de seu avô, um belga que lutara na 1ª Guerra Mundial, morre — na verdade, se suicida, depois de assistir ao filme Sem Novidade no Front. Depois de verem o cadáver, “nu, teso e retorcido”, e sentir o odor do cianureto, avô e menino deixam a casa Gabo diz: “O Belga já não voltará a jogar xadrez.” “Foi uma ideia fácil, mas meu avô a contou em família como uma ocorrência genial. As mulheres a divulgaram com tanto entusiasmo que durante algum tempo fugia das visitas com o temor de que a contassem na minha frente e me obrigassem a repeti-la.”
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De sua infância à sua juventude, passando por noitadas e discussões, García Márquez vai, pouco a pouco, declarando suas preferências e convicções literárias. O primeiro autor que cita é William Faulkner. Conta suas dificuldades em ler Dom Quixote, de Cervantes, até que o pudesse compreender, para se apaixonar. Também passa por James Joyce (Ulisses), Thomas Mann (A Montanha Mágica) e por vários autores latino-americanos. Cita também autores de obras não ficcionais, como Freud. Mas o comentário mais engraçado ele dedica ao companheiro de Karl Marx: “Nunca entendi por que ‘A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado’, de Frederik Engels, era estudado nas áridas tardes de economia política e não nas aulas de literatura, como a epopeia de uma bela aventura humana.”
Ele, que se orgulha de sempre ter ganhado a vida escrevendo, seja como literato, seja como jornalista, proclama em dado momento a semelhança entre a reportagem e o romance (“filhos de uma mesma mãe”) —, para depois afirmar que romance e conto são gêneros absolutamente diferentes, e que acha o último superior ao outro.
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Gabriel García Márquez morreu aos 87 anos, em casa, na Cidade do México
Tanto a família de García Márquez quanto ele próprio estão sempre de mudança, e não é fácil, para o leitor brasileiro, pouco acostumado com a geografia colombiana, seguir seus passos. Mas um dos momentos fundamentais na trajetória do escritor, segundo ”Vivir para Contarla”, é sua passagem pelo Liceu Nacional de Zipaquirá, a uma hora de trem de Bogotá. Lá ele faz boa parte das leituras e das amizades que fundamentaram sua trajetória, especialmente da sua visão sobre a história colombiana. “Não sei o que aprendi na verdade durante o cativeiro do Liceu Nacional, mas os quatro anos de convivência bem-vinda com todos me infundiram urna visão unitária da nação, descobri quão diferentes éramos e para que servíamos, e aprendi a não esquecer nunca que no melhor de cada um de nós estava todo o país.”
No fim da 2ª Guerra Mundial, García Márquez improvisa um discurso, “o único” em 70 anos, segundo ele, em que terminava com “um reconhecimento lírico a cada um dos Quatro Grandes”, e que marca mais um de seus “sucessos literários” orais. “O que chamou a atenção da praça foi o do presidente 'Franklyn Delano Roosevelt, que como el Cid Campeador sabe ganhar batalhas depois de morto'. A frase permaneceu flutuando sobre aridade durante vários dias, e foi reproduzida em cartazes e em retratos de Roosevelt.”
Um dos episódios mais marcantes vividos por García Márquez, já em Bogotá, é o 9 de abril de 1948, quando, durante uma reunião de cúpula pan-americana ocorrida na cidade, há um levante popular após a morte de um líder liberal. Fala das mortes, dos franco-atiradores e de toda a violência — que, para ele, marca a entrada da Colômbia no século 20.
O autor também fala da publicação de seu primeiro conto, no suplemento literário Fim de Semana, do El Espectador, e de seus primeiros anos como jornalista. Mais tarde, nesse jornal, trabalharia todos os dias na redação. “Era uma época em que não se ensinava o ofício nas universidades, mas se aprendia 'no pé da vaca', respirando tinta”, escreve ele.
A vida de García Márquez, assim, vai sendo construída, explicada, e a cada linha vai-se confirmando as primeiras palavras do livro, que antecedem o primeiro capítulo, e que deixam claro o sentido desse seu primeiro livro de memórias: “A vida não é a que alguém viveu, mas, sim, a que alguém recorda e como a recorda para contá-la.”
(*) Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 20 de outubro de 2002