Desde o mês de outubro, a Suécia é governada pelo primeiro-ministro Stefan Löfven, do Partido Social-Democrata Sueco. Löfven é um ex-soldador, que se tornou representante sindicalista e, em 2012, líder do partido. Os sociais-democratas suecos, conhecidos pela sigla SAP, constituem um partido membro da Internacional Socialista e da Aliança de Socialistas e Democratas do Parlamento Europeu. Em breve paralelo, Löfven e seu partido representam muito do que, hoje, é repudiado por parte considerável da sociedade brasileira. A pergunta principal é: Löfven e suas ações de vanguarda na condução da política externa sueca podem dar novo fôlego à política internacional europeia ou ficarão restritas ao país escandinavo?
Podemos citar três ações principais na condução da política externa de Löfven. A primeira, e talvez de significado mais forte, iniciou-se no primeiro dia de governo, em declaração ao Parlamento sueco, quando afirmou que seu governo reconheceria o Estado da Palestina. No dia 30 de outubro, sua Ministra de Relações Exteriores, Margot Wallström, anunciou o reconhecimento do Estado da Palestina como entidade totalmente soberana e que a “única solução possível” é uma solução de dois Estados entre Israel e Palestina. A Suécia tornou-se o primeiro país que reconhece a Palestina enquanto membro da União Europeia; outros países europeus que conhecem o país árabe o fizeram ainda na década de 1980, como Polônia e Hungria. O reconhecimento foi condenado por Israel, que convocou seu embaixador por cerca de um mês.
Fotos: Agência Efe
Stefan Löfven assumiu o cargo em outubro, quase caiu em dezembro, reconheceu Palestina e, agora, peita sauditas
Em dezembro de 2014, Löfven esteve no meio de uma crise de gabinete: a falta de arranjo político fez até com que chegasse a convocar eleições emergenciais para formação de um novo Parlamento. Semanas mais tarde, a situação foi resolvida com um acordo entre seis partidos, garantindo a estabilidade do governo e a aprovação orçamentária, sem que fosse preciso realizar novas eleições.
Logo no início de 2015, o premiê fez algumas declarações sobre a negociação de um acordo de livre comércio entre a União Europeia e os Estados Unidos, a chamada Parceria Transatlântica de Investimento e Comércio.
A Suécia, assim como a Alemanha, é um dos países que mais faz pressões para que o acordo contemple diversos temas de direitos sociais e humanos; preservação de pequenos negócios, combate ao desemprego, direitos digitais e intelectuais e, também, direitos de privacidade. O último item, obviamente, é fortalecido pelo recente caso de espionagem dos EUA, que uniu Alemanha e Brasil na proposição de marcos regulatórios da internet. Esse último aspecto da política externa de Löfven ainda está na retórica e no debate, já que não se sabe as condições concretas da negociação.
Finalmente, a Suécia fez algo impensável para muitas potências europeias: colocou o dedo na ferida nas relações com a Arábia Saudita. O governo sueco assinou, em maio de 2005, um acordo de dez anos para fornecimento de equipamento militar para a Arábia Saudita. Na segunda metade do acordo, ele rendeu mais de um bilhão de euros para empresas suecas. A Suécia é um dos dez países que mais exporta equipamento bélico, enquanto a Arábia Saudita é um dos cinco países que mais importa esse tipo de material, e um dos principais clientes suecos. Empresas como Bofors e o grupo SAAB não são estranhas ao noticiário brasileiro, pelo contrário: o mais novo caça da Força Aérea Brasileira será de procedência sueca.
NULL
NULL
O atual gabinete de Löfven, pressionado de um lado por diversos setores da sociedade sueca, que viam no acordo algo fundamental para a “credibilidade industrial sueca”, e, do outro, pelo seu próprio partido e por outros membros da nova coligação, que notavam a contradição entre advogar por direitos humanos e fornecer equipamento ao regime autocrático, anunciou, semana passada, que não renovaria o acordo, que expira em maio de 2015. Pragmaticamente, Löfven salvou o recém-aprovado governo de coalizão. Ainda, pressionou a Arábia Saudita, a indústria armamentista sueca e a opinião pública europeia sobre essa dualidade nas relações com regimes desse tipo. Rara situação em que, na política, ganhos concretos e moralidade estão do mesmo lado.
No dia anterior ao anúncio, a Arábia Saudita, já sabendo da provável decisão sueca, barrou Wallström de falar sobre violações de direitos das mulheres em um encontro da Liga Árabe no Cairo. A censura teria sido baseada em um “preconceito” da ministra sueca, após ela ter condenado, no Twitter, que o blogueiro saudita Raif Badawi tenha sido submetido a chibatadas, classificando o castigo como “medieval” e afirmando que “tentativas cruéis de silenciar formas modernas de expressão devem ser interrompidas”. Após o anúncio da não renovação do acordo de armamentos, a reação saudita dificilmente dá credibilidade ao país: convocou seu embaixador em Estocolmo, por considerar que declarações de Wallström são uma “interferência em assuntos internos” sauditas.
Ministra de Relações Exteriores da Suécia, Margot Wallström, foi barrada pelos sauditas de falar sobre violações de direitos humanos no Cairo
Pode-se, com bom humor, atestar que a Suécia continua com sua tradição de neutralidade, já que causou a mesma reação em dois países antagonistas, Israel e Arábia Saudita. A reação do país árabe mais parece uma criança contrariada, batendo o pé. Afinal, a alta tecnologia bélica sueca poderia ter papel essencial no desenvolvimento da indústria bélica nacional saudita. Resta saber se outros países não estariam dispostos a vender-se e assumir o lugar, como já debatido neste espaço sobre a França. Para os otimistas, no primeiro semestre de 2014, a Alemanha recusou até mesmo negociar um acordo bilionário de fornecimento de tanques para a Arábia Saudita. De qualquer forma, o papel de vanguarda assumido pela Suécia deve ser louvado.
Correndo o risco de prejuízos econômicos e políticos, como a perda de votos de aliados sauditas nas eleições para os assentos rotativos do Conselho Segurança da ONU, a Suécia mostrou para a Europa que é necessário que a crítica aos sauditas vá além da retórica, explicitando que a monarquia absolutista não é um exemplo de flexibilidade ou de tolerância, ainda mais quando a interlocutora é uma mulher, como Wallström. Indo além, tomou o que se espera que seja apenas o primeiro passo no caminho europeu ao reconhecimento do Estado da Palestina, ato que 135 países — 70% da ONU — já fizeram. A Suécia mantém sua postura de neutralidade e de não-alinhada, mas não confunde esses lemas com omissão.
(*) Filipe Figueiredo é redator do Xadrez Verbal