Há 100 anos, o elemento “G” tornou-se uma das principais moléculas do DNA armênio. Muito além de ser parte constituinte do sangue, ele atingiu a memória e refletiu na construção da identidade do seu povo. Mas “G” não é apenas um componente organicamente vinculado aos armênios do século 20. É também uma letra de cunho político poderoso – e igualmente perigoso.
Aos três anos de idade, vovô conheceu essa letra em uma das formas mais duras e cruéis que uma criança pode aprender.
Era abril de 1915 quando bateram na porta de sua casa, na cidade de Marach. O visitante turco cumprimentou a família com um tiro na perna de seu pai. Até hoje não se sabe se o autor do disparo era um soldado ou simplesmente um vizinho. A única certeza é que seu pai era punido por ser um cidadão armênio em terras otomanas.
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“Eu não vou deixá-lo aqui sozinho. Vão embora e se salvem”, disse a mãe aos quatro filhos, apressando-os para partir. Vovô tinha acabado de sair do berço e começado a dar seus primeiros passos sozinho, enquanto os outros irmãos já estavam no ápice da adolescência. Eles nunca mais veriam seus pais.
O desespero da mãe era justificado: poucos meses antes do que a família futuramente chamaria de “Dia D” com a chegada do misterioso visitante à residência, ela perdera seu primeiro filho. Aram era um jovem professor que disseminava ideias contrárias ao governo turco e incendiava a sala de aula com pensamentos revolucionários.
Os pais estavam cientes de que Aram estava na mira das autoridades e não o impediram de se expressar, pois também faziam parte do partido socialista Tashnagtsutiun (Federação Revolucionária Armênia), que lutava pela liberdade dos armênios na Turquia. A família, inclusive, escondia armas em túmulos no cemitério – uma manobra arriscada, pois os armênios que fossem vistos armados eram condenados à morte na cidade.
Situada na porção central do território turco-otomano, Marach é considerada uma região da “Armênia Ocidental” pela forte presença de uma comunidade armênia que floresceu no local, embora fosse distante de onde se formou propriamente o atual Estado armênio.
Com o sistemático massacre de armênios e a consequente retomada do território pelos turcos, a cidade teve seu nome alterado para Kahramanmarach que, na língua turca, significa “Marach heróica”, pois a limpeza étnica foi um verdadeiro ato de bravura aos olhos otomanos.
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Divisão após o Tratado de Sèvres (1920): Império Otomano em laranja, Síria em azul e Armênia em amarelo
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Em meio a essa troca de nomenclatura e em plena perseguição, vovô fugiu com seus três irmãos em direção a Aleppo, cidade síria situada a mais de 200 quilômetros ao sul de sua cidade natal.
No caminho, todavia, vovô foi resgatado pela Cruz Vermelha. Na ocasião, a ONG humanitária estipulou um padrão de resgate de crianças entre 3 e 7 anos: razoavelmente desenvolvidas para conseguirem caminhar por conta própria, mas vulneráveis o suficiente para morrerem com mais facilidade em virtude das dificuldades do trajeto.
Como de praxe, a Cruz Vermelha encaminhava as crianças armênias para um orfanato na ilha grega de Corfu. Lá, elas aprendiam as disciplinas da escola em francês, mas assistiam a aulas diárias de língua armênia para não perderem vínculo com as suas raízes culturais.
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Campo de refugiados armênios na cidade síria de Aleppo: pobreza e dificuldades
Do outro lado do mundo, em Aleppo, os três irmãos demorariam dez anos para conseguir sair do campo de refugiados e, enfim, se estabelecer na Síria, tendo a prática da alfaiataria como meio de sobrevivência. Com o inferno do passado sendo gradualmente superado e uma perspectiva de futuro à vista, Nazareth, o primogênito, decidiu que era hora de buscar o caçula em terras gregas.
“Aqui não é a sua casa e esses meninos não são sua família. Mas do outro lado desta porta está seu irmão e daqui para frente você vai ficar com ele”, instruiu o diretor da Cruz Vermelha a vovô, que já completava 16 anos.
A maçaneta foi aberta, dando passagem para um homem de quase 30 anos. De imediato, Nazareth, homem feito, reerguido e casado, correu em direção ao adolescente à sua frente e caiu no choro, apertando-o com força. Décadas depois, vovô recordaria que não tinha a menor ideia de como deveria reagir diante daquele desconhecido que o abraçava.
De Corfu, primogênito e caçula voltaram a Aleppo onde buscaram os outros irmãos e partiram para a cidade francesa de Marselha. O ano era 1926 e apesar de o governo francês permitir refúgio aos armênios em vista do extermínio e das perseguições, a Europa estava destruída no pós-Primeira Guerra Mundial.
Patrícia Dichtchekenian/ OperaMundi
Monte Ararat é um dos principais símbolos armênia, mas hoje está localizado em território anexado por turcos
Vovô garante que seus irmãos lhe disseram que a qualquer momento estouraria outra grande guerra no continente europeu e, por isso, deveriam tentar construir um futuro em outra parte do mundo.Como a vida é constituída da tensão entre acaso e escolha, Brasil surgiu como uma oferta dada à sorte pelo vendedor de bilhetes de navio de Marselha. E eles acataram.
Mais de 80% dos armênios que chegaram ao Brasil eram originários de Marach e de cidades adjacentes, como Zeitun, Sis e Hadjin. Vovô seria um desses 25 mil imigrantes que formariam a comunidade armênia em terras brasileiras na década de 20, consolidando-se como provas vivas do massacre de 1.5 milhão de armênios. Massacre este que vovô conheceria pela letra “G”, de Genocídio, de forma dolorosa como o crescimento de um menino e triste como o início da primavera de abril de 1915.
Dado seu poder semântico, genético e político, certas palavras devem ser ditas, letra por letra, e não meticulosamente evitadas e confundidas. A história de vovô e os testemunhos de outros 800 mil armênios que se espalharam pelo mundo não foram mera coincidência histórica.
Além de possuírem o elemento “G” em seu DNA, todos esses filhos da diáspora são conectados pelo simbólico sufixo “ian” que compõem seus traços identitários comuns. Código de reconhecimento internacional, essas três letrinhas significam “origem”. Com um pé sempre no passado, vovô não se prendia à narrativa da memória trágica do genocídio armênio: sua história é uma marca de resistência.
A Artin Dichtchekenian.