Todos os anos milhões de armênios se reúnem no mundo inteiro para rememorar e exigir justiça para um dos mais sangrentos capítulos do século XX, que apesar do tempo permanece vivo na memória e impune na história. A Turquia prossegue com sua política negacionista recusando-se a reconhecer o Genocídio Armênio com medidas cada vez mais repressivas e antidemocráticas.
Na noite de 24 de abril de 1915, aproximadamente 250 líderes armênios foram aprisionados e mortos na primeira leva de massacres. Assim, as ordens de extermínio contra a minoria armênia seriam melhor executadas sob diversas alegações encobertas pelo cenário da I Guerra Mundial, abrindo espaço para a implementação da ideologia panturquista – união dos povos turcos da Anatólia à Ásia Central.
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Centenário do genocídio armênio: campo de refugiados na cidade de Damas, Síria, após o massacre que teve início em 1915
Historiadores estimam em um milhão e meio o número de mortos no genocídio ocorrido entre 1915 e 1923 no qual os mais bárbaros crimes foram cometidos premeditadamente contra a população armênia, o que nos faz refletir sobre a capacidade destrutiva e cruel do ser humano posto em seu mais baixo nível. As provas estão amplamente amparadas por documentos oficiais, testemunhos, fotografias, relatos de sobreviventes, entre tantos outros.
A memória tem papel fundamental em preservar e manter vivo o clamor por justiça. No entanto, passado um século do ocorrido o governo turco continua com sua política genocida de negação contra o segundo genocídio mais estudado do mundo.
O artigo 301 do Código Penal Turco é um instrumento do negacionismo que visa manter o fato como tabu e prevê a criminalização daquele que denegrir a “turquicidade”, ou identidade turca, e tem levado dezenas aos tribunais, entre os quais, o Nobel de Literatura Orhan Pamuk por declaração sobre o Genocídio Armênio.
Hrant Dink, editor de um jornal bilíngue armênio-turco de Istambul, foi condenado pelo 301 e assassinado por um ultranacionalista turco em 2007, que ao ser preso foi tratado como herói pela polícia. Por outro lado, a morte do jornalista de origem armênia causou grande repercussão internacional e indignação por parte da sociedade civil turca: mais de 100 mil pessoas saíram às ruas sob os lemas “somos todos Hrant Dink” e “somos todos armênios”. Apesar de tudo, o artigo 301 alterou o termo “identidade turca” para “nação turca”, numa sutil diferença que na prática é imperceptível.
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Cartaz em Ierevan comparando os dois massacres: reconhecer para evitar
Além disso, as liberdades de expressão e de imprensa na Turquia estão ligadas a essa política de mordaças. Segundo o Comitê para Proteção dos Jornalistas, o país figurou como o que mais prendeu jornalistas no mundo nos anos de 2012 e 2013. O Índice de Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras lista a Turquia abaixo da 100º posição dentre 180 países desde 2007.
Na véspera do 24 de abril do ano passado, o governo turco emitiu uma carta de condolências referente aos “eventos de 1915” recusando-se a tratar o fato como genocídio, tentando desviar o foco das reivindicações armênias e reforçar o jogo de faz de conta turco. O que se busca não é compaixão muito menos pena, mas sim, reconhecimento, restituição e reparação. Neste ano, a Turquia decidiu comemorar os cem anos da Batalha de Galípoli na mesma data símbolo que os armênios rememoram suas vítimas.
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No último dia 12 de abril, o Papa Francisco celebrou uma missa em tributo ao centenário do genocídio no Vaticano condenando abertamente o ocorrido e exortando a Turquia a reconhecê-lo. Dias depois o Parlamento Europeu adotou uma resolução reconhecendo o genocídio. As repercussões sobre o assunto resultaram em uma declaração pública do presidente turco ameaçando expulsar 100 mil cidadãos armênios que vivem em seu país. Na mesma semana ainda um conselheiro de origem armênia do primeiro-ministro da Turquia foi demitido um dia após falar abertamente sobre o genocídio.
À parte do governo turco, mudanças consideráveis têm sido observadas na sociedade. Em 2008, 300 intelectuais e lideranças turcas emitiram uma carta de desculpas aos armênios. Dois anos depois, realizou-se pela primeira vez um ato público em Istambul em rememoração ao genocídio, que é repetido anualmente até hoje. Em 2013, manifestantes na Praça Taksim, construída sobre um antigo cemitério armênio, instalaram um túmulo simbólico resgatando a memória ali enterrada.
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Genocídio começou em 24 de abril de 1915, quando mais de 800 intelectuais armênios foram presos, deportados e assassinados
No âmbito internacional, o Genocídio Armênio já foi reconhecido por 24 países, entre os quais a Alemanha e Áustria, aliados dos otomanos na época, e por nossos vizinhos, como Argentina, Bolívia, Chile, Uruguai e Venezuela, além do Parlamento do Mercosul. O Brasil ainda se esquiva da responsabilidade de condenar esse crime contra a humanidade; omisso, é também conivente. No entanto, os estados de São Paulo, Ceará e Paraná o reconheceram oficialmente.
As feridas abertas há um século ainda não cicatrizaram, permanecem abertas, expostas e suscetíveis ao resquício de uma política estatal que tentou, sem sucesso, exterminar fisicamente a questão armênia. Hoje, a disputa se dá pelo direito à memória e superação de um trauma coletivo. Enquanto a Turquia insistir em negar o inegável e não aceitar seus erros aprendendo com as lições do passado, tomando-os despretensiosamente, continuará atrasando seu desenvolvimento democrático, ético e moral.
(*) Sarkis Ampar Sarkissian é professor de curso de extensão de Arte e Cultura Armênia na Universidade de São Paulo (USP). É Internacionalista, especialista em Direitos Humanos e pesquisador do grupo Armênios: Genocídio, Imigração e Memória do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) e da Área de Língua e Literatura Armênia do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).