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A visita do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) a Israel e à Palestina na última semana gerou amplo debate entre nomes da esquerda brasileira, apoiadores do parlamentar e até mesmo companheiros de partido.
Para alguns, Wyllys foi ingênuo e teria demonstrado estar mal informado sobre a realidade palestina sob a ocupação israelense nas postagens que fez no Facebook, onde publicou diversos relatos da viagem. Para outros, as críticas são desmedidas e visam abalar o parlamentar, que tem uma importante luta no Congresso brasileiro em defesa dos Direitos Humanos.
Assim, Opera Mundi convidou dois especialistas para debater a questão.
De um lado, Paulo Abrão, Secretário Executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul, para quem Wyllys fez bem em realizar a visita:
Escandalização da esquerda por viagem de Jean Wyllys a Israel é erro político
Do outro, Waldo Mermelstein, militante socialista e antissionista e filho de família judaica, opina que viagem foi um equívoco.
Leia abaixo o artigo de Mermelstein:
Jean Wyllys fez bem em ir a Israel?
NÃO
Quando as notícias sobre a viagem a Israel do deputado Jean Wyllys começaram a circular,escrevi uma carta a ele e a enviei através de seu perfil público no Facebook. Mesmo não tendo obtido resposta direta, foi possível chegar a várias conclusões.
Em primeiro lugar, a carta tal qual foi enviada:
“Companheiro Jean Wyllys,
Na semana passada, companheiros de longa data me chamaram a atenção para seu post no Facebook acerca de sua visita a Israel. Li com atenção o que você escreveu, além de boa parte das respostas que o post ensejou. Vi também que foi a convite de um amigo meu de muito tempo, James Green, que foi militante da mesma organização socialista (trotskista) que eu e um dos iniciadores na esquerda, há décadas, do combate pelos direitos dos homossexuais.
Sou um antigo militante da esquerda. Meus pais eram judeus, e eu cheguei a ser sionista na adolescência, rompendo com o sionismo após ter passado um ano em Israel. Por essa razão original, sigo acompanhando o tema com muito interesse. Desculpo-me pela extensão desta carta, o que, entretanto, me parece compreensível pela intensidade e urgência do debate em questão. De todo modo, não me aprofundarei no tema tal como ele exigiria, afinal, esta carta é só uma carta, e não seria justo, metodologicamente, responder a um post com infindáveis laudas. Naturalmente, não tenho acordo com o que você escreveu, e acho que algumas das questões/críticas que irei colocar abaixo já foram, talvez com mais propriedade, assinaladas por outros dos seus interlocutores.
Em primeiro lugar, o tema não é entre judeus e árabes, mas entre o Estado sionista (e os que o apoiam) e a população nativa que ali habitava há centenas de anos. Infelizmente, a esmagadora maioria da população judaica de Israel apoia os aspectos essenciais em que se baseia o Estado de Israel. Não é possível se referir à situação atual sem relatar e compreender o que aconteceu em 1948, quando as Nações Unidas dividiram a região da Palestina Histórica contra a vontade da maioria da população e os sionistas aproveitaram a chance histórica para expulsar 80% da população palestina. Desde então, Israel tem continuado essa obra, se estabelecendo como um Estado judaico e democrático, um oxímoro. Sugiro que faça um pequeno teste: sem falar sobre mais nada, proponha aos que estão lhe recebendo, ou às ONGs que você mencionou, que Israel comece se definindo como um estado de todos os seus habitantes, como o Brasil o é, por exemplo, não obstante todas as suas desigualdades sociais. Essa pode ser uma lição útil para você ver que não está perante um Estado como os demais, mas frente a um Estado que é legalmente racista, a começar pela sua definição e suas infinitas leis racistas. Não estou me referindo ainda aos territórios ocupados, mas às fronteiras de 1948.
Em segundo lugar, a ideia de dois Estados, independentemente de sua justiça, foi destruída pelas décadas de ocupação e colonização. Por isso, uma saída sem banho de sangue que a você e a todos seduz teria que ter como base a restituição da justiça, dos direitos espoliados dos palestinos para que pudesse haver a convivência pacífica. A base para isso é o direito internacional dos refugiados e seus descendentes que foram expulsos em 1947 e 1948. Sei que há várias versões sobre o fato, mas a boa historiografia palestina já foi confirmada quando da abertura dos arquivos do Estado de Israel e mostra que houve uma política deliberada de expulsão em massa dos residentes palestinos. Mas mesmo que isso não fosse verdadeiro, o direito de retorno dos refugiados é inalienável. Basta ver tudo o que diz o direito internacional e as próprias resoluções da ONU da época, nunca revogadas. Então pergunte aos seus anfitriões tão democráticos se eles estão dispostos a aceitar esse direito, no marco dos dois Estados que propõem. Não quero fazer nenhum jogo, sei perfeitamente o que irão lhe responder.
Eu e outras várias pessoas sugerimos que você fosse aos territórios ocupados palestinos Em terceiro lugar, e talvez o mais importante: siga o exemplo de Caetano, vá até à Cisjordânia, conheça as aldeias ameaçadas permanentemente pelos colonos e pelo exército de ocupação. Verás que a vida lá é só não duramente real, mas também de viés. A experiência de Caetano o levou à conclusão de que, parafraseando seu companheiro de show na ocasião, Gil, ter ido a Israel foi ‘necessário para [não] voltar’. Sem concordar com a maioria das reflexões de Caetano em sua volta de Israel (pois ele mantém o erro de apoiar a solução dos dois Estados, além de ter furado o boicote e seguir atacando o BDS) arrisco a dizer que as conclusões a que você chegará como parlamentar de esquerda e ativista social (não nesta ordem) serão bem distintas das que você colocou em seu post. Aliás, não por acaso, boa parte de seus eleitores possuem uma posição bem distinta do que você expressou e por razões bem fundamentadas.
Voltando ao começo da minha carta: não é verdade que o movimento de solidariedade aos palestinos se baseie no antissemitismo. A cartada do antissemitismo é uma das maiores mentiras divulgadas pelo movimento sionista. É bom saber que os sionistas nada fizeram para lutar contra o antissemitismo quando ele era importante. Em vez de se unirem aos movimentos sociais para lutar contra o antissemitismo preferiram aderir à ideia de colonizar a Palestina e negociar com todos os poderes opressores, os podres poderes de então, a começar pelo Czar de toda a Rússia, onde viviam 80% dos judeus à época (início do século 20). Há mais uma mancha na história dos sionistas que é o acordo de transferência de bens e pessoas para a Palestina, feito com Hitler em 1933, no momento em que a esquerda no continente tentava organizar um boicote à Alemanha. Digo isso porque como descendente de uma família que se perdeu nos campos de concentração e nas câmaras de gás me repugna a utilização falsa desse fato monstruoso. Prefiro a inteireza moral de muitos sobreviventes que sempre disseram que justamente por terem sofrido e presenciado o horror não podem ser cúmplices em uma política racista.
Por fim, você compara o BDS com o boicote americano a Cuba. Nesta lógica formal e nada dialética, você iguala a violência do escravo para com o feitor à violência deste contra aquele, ignorando que a própria escravidão já é, antes de tudo, uma própria violência. Pare para pensar e verá que a comparação entre os dois boicotes é descabida: o boicote a Cuba é pelo fato da pequena ilha ter desafiado o poder imperial. O BDS é a arma dos palestinos oprimidos por Israel e estimula a solidariedade para que os cidadãos judeus de Israel percebam que o mundo não tolera regimes como o do apartheid. Você estaria contra o boicote ao regime racista dos boers? Certamente não! A luta era para que houvesse mínimos direitos iguais entre todos os que lá habitavam. O boicote levou décadas, mas ajudou muito a que o regime racista da África do Sul caísse. Leve em conta que há várias organizações sociais na Europa e nos EUA que já aderiram ao boicote e que este é um instrumento legítimo de luta.
Não espero que concorde com o que escrevi rapidamente, mas pelo menos vá conversar, conhecer o lado dos milhões nos territórios ocupados. Foi a visão dos operários que trabalhavam em Israel e voltavam para Gaza em 1970, em um ônibus cheio deles em minha volta ao kibutz em que trabalhava, que me empurrou decididamente a romper com o sionismo, mais do que qualquer livro que li. Como disse certa feita um antigo filho de judeus, ateu e marxista Lev Davidovich Bronstein (Trotsky), ‘se o papel aguenta tudo, a História não’. E a história lá não é senão a história da opressão de um Estado sobre um povo sem Estado. O resto o papel aguenta, mas o resto é resto.”
Que lições deixou este debate?
Postura e conteúdo se combinaram para tornar a turnê de Jean Wyllys por Israel um desastre para a causa palestina e para sua figura de parlamentar que defende as minorias oprimidas.
Reprodução/Facebook
Visita, realizada no início do mês, gerou amplo debate nas redes sociais, principalmente entre a esquerda
Quanto à forma: ao ignorar a orientação do BDS, o parlamentar demonstrou desprezo pelas representativas organizações da sociedade civil que o lançaram. O BDS tem tido muita repercussão nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, sua atuação ainda é incipiente, mas o deputado sabe do alcance mundial do movimento e não poderia ignorá-lo. Para ser claro, ele é contra o boicote e não só o cultural. Como disse um companheiro palestino em minha página do Facebook: “alguém tem alguma ideia melhor” para lutar contra o apartheid? Atacar o boicote é enfraquecer o movimento palestino.
Além disso, ele não debateu o projeto da viagem nem com sua própria base e boa parte dela viu, estarrecida e entristecida, os posts que começou a enviar através de suas redes sociais. Ainda mais com a reação de Jean Wyllys contra qualquer debate e desqualificando seus oponentes.
Indo aos temas de conteúdo, é claro que o boicote não se dirige contra indivíduos e setores que realmente lutam contra o apartheid israelense.
Parece chocante que se proponha um boicote acadêmico, mas é preciso ter claro que as universidades israelenses são parte do Estado e seu esforço de guerra, como já assinalou Desmond Tutu. A Universidade Hebraica não é exceção. Ela tem parte de sua estrutura construída sobre terra palestina expropriada, apoia o esforço de guerra israelense, como no último massacre de Gaza, mantém relações estreitas com o serviço de segurança israelense, discrimina e impede a manifestação dos estudantes árabes dentro do campus contra a política do Estado, como durante a agressão a Gaza. Toda atividade feita contra a ocupação é positiva, mas precisa passar pela opinião das entidades palestinas que organizam o boicote. Esse é o X da questão.
Reprodução/Facebook
Placa alerta que passagem para o lado palestino é contra a lei de Israel e a vida de cidadãos israleneses se encontra em risco
Quanto ao conteúdo, não estamos discutindo alguma luta unitária que possa ser feita entre os distintos setores que se opõem a aspectos importantes, mas parciais da política israelense, como a luta contra os grupos de extrema direita, em defesa dos direitos humanos, etc. O que Jean Wyllys está propondo é outra agenda política para encarar o conflito e por isso ser contra o boicote faz parte. Os palestinos têm razões para desconfiarem dessa agenda, porque conhecem a matriz: a ideia de estabelecer dois Estados, deixando para trás 70 anos de destituição. O partido citado por Jean Wyllys é o Meretz, um partido sionista de esquerda, o mesmo que impulsionou propostas “generosas” de paz, como a Iniciativa de Genebra em 2005, em que se oferecia pouco mais do que as já reduzidas propostas de Clinton e Ehud Barak em 2001. Retorno simbólico de poucos milhares de refugiados, manutenção das colônias com a permuta de territórios entre estas e as regiões em que os palestinos são majoritários nas fronteiras de 1948. Moral da história: os milhões de refugiados teriam que se apertar em menos de 22% do território da Palestina Histórica. Essas propostas estão reiteradas aqui.
Para clarificar mais as coisas, propus na carta que perguntasse aos seus interlocutores se estão dispostos a lutar de forma incondicional por abolir o caráter etnocêntrico do Estado israelense – independentemente de qualquer debate sobre a solução global para o conflito – estabelecendo um Estado de todos os seus cidadãos. Com isso, modificariam suas leis básicas e as leis complementares a elas que definem um privilégio jurídico aos judeus, e não somente o derivado da estrutura de classes como em outros países. Note-se que nem estamos falando de refugiados, mas das fronteiras de 1948. Este sim é um tema central. Se houve a pergunta, não soubemos a resposta. E o silêncio fala muito em política. Não pode se considerar parceiro estratégico quem não defenda o fim do sistema de discriminação institucionalizada em Israel.
Outro ponto: seus interlocutores estão a favor do desmantelamento das colônias na Cisjordânia e o fim do bloqueio à Gaza, ambos de forma incondicional, ou querem extrair “concessões” dos palestinos por algo que não lhes pertence? Por fim, para determinar até onde se pode caminhar com os seus contatos, perguntou que posição assumiram nas últimas guerras de agressão, como a do Líbano?
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Ir aos territórios ocupados, como Paulo Sérgio Pinheiro e eu lhe sugerimos, foi uma boa iniciativa, mas muito mal utilizada. Em Belém, entrevistou um palestino golpeado pela tragédia causada pela ocupação e que dizia estar disposto a renunciar ao direito de retorno e o colocou como um parâmetro para a negociação de paz. Ora, alguém acha que os 5 milhões de refugiados aceitam algo assim? O deputado consultou as organizações dos envolvidos?
No penúltimo post político, Jean Wyllys retomou sua apologia aos setores da esquerda israelense que encontrou e que seguem repetindo a ideia dos dois Estados, que pertence à mesma matriz da que é patrocinada por norte-americanos, europeus, pelo Estado israelense, pela Arábia Saudita, com um pouco mais concessões. É, na verdade, uma repetição piorada da tragédia dos Acordos de Oslo, quando a OLP renunciou aos direitos fundamentais do povo palestino e Israel somente a reconheceu como representante dos palestinos.
Reprodução/ Facebook
Em seu perfil, Jean afirmou que esquerda brasileira deve conhecer melhor a esquerda israelense e as complexidades de Israel
O balanço de Oslo deveria ensinar que esse não é o caminho e Jean Wyllys deveria ter sido mais cuidadoso, mais modesto em um tema que pouco conhecia. A referência final aos kibutzim é folclórica: eles sempre foram bastiões fundamentais do Estado, forneceram nos momentos cruciais a nata dos combatentes e sempre foram exclusivos para judeus. Se esse argumento pôde sensibilizar Sartre nos anos 1960, quando pouco se sabia no Ocidente sobre a Nakba e muito presente estava o Holocausto, agora que eles perderam quase toda a relevância é patético. O mais incrível é que, em minhas andanças por Israel em 1970, trabalhei durante quatro meses no kibutz Zikim, onde se dá a entrevista feita por Jean Wyllys, e conheço a pessoa que ele entrevistou daquela época, pois militávamos na mesma organização sionista. Pena que ele não diga que, como o palestino que falou comigo no ônibus que ia para Gaza, Zikim, como a maioria dos kibutzim, foi construído sobre terras palestinas roubadas da aldeia de Hirybia, o que levei muitos anos para descobrir!
Se alguém tem autoridade em falar sobre apartheid são os que o sofreram. Os palestinos podem se inspirar nas palavras de Akhmed Kathrada, companheiro de Mandela em Roben Island por 26 anos, autor do magnífico livro “No Bread for Mandela”, que considera Israel um regime de apartheid: “os sul-africanos racistas precisam sentir mais e mais que eles estão sós em todo o mundo em sua concepção de superioridade racial. Eles precisam sentir a angústia do isolamento do mundo civilizado nas esferas da cultura, dos esportes, etc.”
O ponto positivo da viagem de Jean Wyllys foi ter servido para dar destaque ao tema para muitas pessoas que nunca tinham debatido tão de perto o assunto. Já surgiu um embrião de boicote acadêmico brasileiro a Israel e em poucos dias, nas férias, 70 professores universitários já o subscrevem!
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*Waldo Mermelstein é tradutor, socialista, antissionista e filho de família judaica.