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Subcomandante Marcos ao lado do comandante Tacho em La Realidad, Estado mexicano de Chiapas, em outubro de 1999
“Qual a foi a pior mentira que já disseram de você?”, pergunta o entrevistador da rede televisiva espanhola TVE ao guerrilheiro mascarado, de olhar penetrante, voz suave e segura, enquanto segura um cachimbo aceso. “Que sou um símbolo sexual”, responde o Subcomandante Marcos quase sem pensar e em primeira pessoa – ao contrário do que costuma fazer ao representar publicamente o EZLN (Exército Zapatista da Liberação Nacional), movimento indígena insurgente que colocou o estado de Chiapas e o México no mapa revolucionário mundial em 1 de janeiro de 1994. O espanhol ri, enquanto o mexicano sustenta a dureza do olhar.
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Marcos, nome de guerra que adotou esse cidadão cuja biografia pré-EZLN é das mais especuladas dos últimos 20 anos, é capaz de reconhecer sua exagerada exposição midiática, que foi parte do plano de comunicação dos zapatistas, em seu afã de conversar com o mundo.
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Foi essa exposição, garantida sobretudo por entrevistas a jornalistas do mundo inteiro de 1994 – quando os zapatistas ficaram conhecidos por um levantamento armado que por 12 dias conquistou o controle de San Cristóbal de las Casas e de outras sete cidades em Chiapas, inspirado pelo iminente NAFTA, acordo de livre comércio entre México, Estados Unidos e Canadá – a 2006, quando eles deram por terminada a chamada “Outra Campanha”.
[Marcos, um dos símbolos da luta zapatista]
Nela, Marcos percorreu o território nacional para escutar as demandas e necessidades dos cidadãos, que fez do subcomandante uma figura mítica.
Sex symbol, celebridade, artista e intelectual, revolucionário para estampar camisetas ou simplesmente ícone da luta anticapitalista global: o Subcomandante Marcos carrega debaixo de seu passa-montanhas todas as projeções humanas.
Isso, somado ao fato de que seu movimento insurgente foi o grande percursor da utilização da internet, portanto do espaço sem censura nem fronteiras que é o ambiente virtual, para gerar mobilizações sociais, o transforma em um mito de carne e osso, alguém que é capaz de povoar tanto os sonhos de mulheres que se sensibilizam pelo pouco que ele deixa à vista – o mel dos seus olhos e a delicadeza de suas mãos – quanto de jovens que hoje entendem a luta revolucionária como algo que deve se integrar à vida e não destacar-se dela.
Mas o que faz dele um caso tão bem sucedido de herói contemporâneo? Marcos nega mostrar o rosto, porém, oferece todo o resto. Gratos pela oferta, nós o aceitamos.
Parece que nasceu em Tampico (Tamaulipas, no nordeste mexicano), em 1957, e que se chama Rafael Guillén, o que ele nega junto com os demais dados que o governo do México afirma saber a seu respeito. Viveu anos no DF, onde estudou Filosofia na UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México) e deu aulas na UAM (Universidade Autónoma Metropolitana), antes de empreender as experiências que o despertaram ideologicamente para a luta social, como quando prestou serviço nas colônias marginais de Tampico ou viajou para a Serra Tarahumara na companhia do irmão Carlos Simon.
Nessa história vivida ou criada, que tanto sentido faz não só nos jornais, mas em nossas mentes curiosas, outros dados ainda mais finos nos deleitam: ainda criança, Marcos não perdia a oportunidade de se apresentar como mágico em festas infantis. Também, aprendeu com o pai a recitar poemas, sofria de asma, era muito próximo da avó e, como bom latino-americano médio, estudou a vida inteira em colégios religiosos.
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Já adulto, viveu alguns anos em Barcelona, na Espanha, onde trabalhou na rede de lojas El Corte Inglés e, uma vez imerso no pensamento político, deixou-se inspirar pelas ideias de Mao Tsé-Tung, Antonio Gramsci, Carlos Monsiváis, Emiliano Zapata e, por que não, Che Guevara. Encontrou-se, finalmente, na dura realidade das montanhas de Chiapas e na histórica exploração da terra originária dos indígenas da região, depois de militar nas Forças de Liberação Nacional.
Entre os grandes dons de Marcos, está sua narrativa literária, a nata de um discurso simples e realmente apaixonante, que contém doses certas de absurdo, poesia e irreverência. De 1992 a 2006, publicou muito: mais de 200 dissertações e histórias, além de 21 livros em pelo menos 33 edições. Muitas delas são infanto-juvenis e contêm fábulas “socialmente conscientes”, como A história das Cores, baseada num mito da criação maia sobre tolerância e respeito pela diversidade. Para adultos, escreveu Mortos incômodos com o escritor Paco Iguano Taibo II, publicado em 12 entregas que delineiam a vida política nacional mexicana pelo jornal La Jornada.
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Em 21 de dezembro de 2012, cerca de 40 mil zapatistas marcharam. Comunicado disse: “Escutaram? É o som do seu mundo caindo”
Por ideias políticas afins e talvez pelos dotes literários, o subcomandante é amigo do escritor uruguaio Eduardo Galeano, de quem virou fã depois de ler Memória do fogo. Galeano foi convidado a ler um dos relatos de Marcos reunidos na compilação Los otros cuentos – Relatos del Subcomandante Marcos, titulado “La historia de las miradas”. Ele também foi considerado amigo do Nobel português José Saramago, que chegou a visitá-lo em território zapatista e que certa vez declarou: “Que eles [os indígenas do EZLN] não nos abandonem, e tenho que reiterar mais uma vez que não os abandonem vocês”.
Flertando com a música, que cruza fronteiras com facilidade ainda maior que a literatura, é mais do que conhecida sua colaboração com o músico Manu Chao, que lançou a faixa “Para todos” com uma carta de Marcos dirigida “al pueblo de México y a los pueblos y gobiernos del mundo”, na qual fala, entre outras coisas, “da longa noite dos 500 anos” e da lista de demandas dos povos originários da América Latina por direitos básicos como teto, terra, trabalho, pão, saúde, educação, independência, democracia e liberdade. O evento foi acompanhado de um vídeo em que o subcomandante, com a atitude doce e despretensiosa de sempre, promete entregar ao público uma foto dele e ainda retirar o passa-montanhas. A foto é um espelho e ele se revela no rosto de todos e de cada um de nós.
“Eu pouco me importo com as vanguardas revolucionárias de todo planeta”, escreveu ao final de uma carta aberta dirigida ao ETA (Euskadi Ta Askatasuna, basco para Pátria Basca e Liberdade) em 2003. Para que se preocuparia, se o grande objetivo de Marcos e dos zapatistas, segundo eles e segundo mandam os manuais subentendidos da insurgência moderna, não é derrubar e depois tomar o poder, mas fazer-se escutar. E quem não precisa ser escutado? Por isso é que “todos somos Marcos”, como ele mesmo disse nas inúmeras vezes que tentou explicar o porquê dos rostos tapados dos zapatistas e do nome que escolheu para deixar de ser Rafael Guillén (ou quem quer que seja) para tornar-se alguém sem passado e que luta por um melhor futuro, sobre cuja biografia só se pode especular.
Por sinal, quem quiser se especializar nas especulações, há disponíveis no mercado fontes bibliográficas como o livro Corte de caja, baseado em duas entrevistas da jornalista mexicana Laura Castellanos das que supostamente emergem comentários íntimos como “amo loucamente Angelina Jolie”. Ou então, o que escreveu Luiz Álvarez, ex-comissário do governo mexicano para o diálogo com os zapatistas, e que o jornal Milenio publicou em 2012, contendo a revelação de que Marcos está gravemente doente de câncer e que pediu ajuda ao estado para se curar.
Mas a maioria de nós prefere esperar a próxima imagem do subcomandante, que apareceu publicamente pela última vez em 2009, ainda que ela seja de rosto coberto, cachimbo aceso e não revele mais que um par de olhos apaixonantes, porém, já cansados. Basta isso para sentir que somos Marcos e que Marcos somos nós, ainda que o próprio tenha advertido a um jornalista (e portanto ao mundo): “O Marcos que todos conhecem é o Marcos do passa-montanhas, algo que se construiu em torno dele e que reflete um montão de aspirações e que não têm nada a ver com a pessoa que está atrás. Mas que alguém está atrás do passa-montanhas, isso eu te asseguro”.