O clérigo islamita Fethullah Gülen, durante anos aliado do atual governo da Turquia, se transformou no principal inimigo do presidente Recep Tayyip Erdogan, até o ponto de ser classificado como “terrorista” e responsabilizado pelo golpe de Estado fracassado que abalou o país na última sexta-feira (15/07).
Gülen, nascido em 1941, filho de uma família religiosa da província de Erzurum, no nordeste da Turquia, trabalhou até os anos 1980 como clérigo, seguindo as doutrinas do teólogo fundamentalista turco Said Nursi.
A partir de 1990, Gülen se envolveu na criação de uma rede de seguidores com influência política e social, conhecida como Hizmet. Em turco, no entanto, seus membros são chamados de “fethullahci”.
Em 1999, Gülen viajou aos Estados Unidos para buscar tratamento médico e, desde então, vive de forma reclusa em uma mansão perto da cidade de Saylorsburg, no estado da Pensilvânia. Não costuma aparecer em público, mas suas doutrinas são transmitidas por vídeo ou em mensagens divulgadas entre seus seguidores.
Durante a década passada, a expansão dos “fethullahcis” na polícia e no Judiciário turco era um segredo. Sua presença em postos-chave da administração deixava de lado funcionários kemalistas e laicos, impondo uma visão islamita, em favor do cumprimento de normas religiosas e uma maior segregação entre mulheres e homens.
A mensagem de Gülen inclui o respeito à democracia, insistindo na fé como fundamento social (seus seguidos pedem que a blasfêmia seja penalizada) e no diálogo cordial com outras religiões, em uma visão de aliança espiritual contra o materialismo e o ateísmo.
O Hizmet se transformou assim no grande trunfo da islamização promovida pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) quando Erdogan assumiu o poder, em oposição ao poder das Forças Armadas, tradicional guarda do Estado laico dentro da Turquia.
O duelo foi decidido no grande julgamento, batizado de “Ergenekon” (2008 e 2013), no qual centenas de militares de alta patente foram acusados de conspiração golpista. Muitos deles foram condenados a prisão perpétua, deixando o Exército acéfalo.
Era o fim de 60 anos de uma “democracia tutelar” na Turquia, que representava a subordinação das Forças armadas ao governo, uma vitória contundente para o AKP e Erdogan, fundador do partido.
Mas, em 2016, a Corte Suprema da Turquia anulou todas as penas. Erdogan acusou publicamente os “gülenistas” de ter tentado atrapalhar o grande julgamento com provas falsas.
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A inimizade entre Gülen e Erdogan cresceu. A influente imprensa gülenista, defensora incondicional do atual presidente, começou a se distanciar em 2013 do rumo cada vez mais autoritário do então primeiro-ministro, sobretudo após os protestos no parque Gezi.
Até então, seguidores de AKP e Hizmet não viam grandes diferenças ideológicas entre ambos os grupos. No fim de 2013, porém, houve a ruptura definitiva. Erdogan determinou o fechamento de todas as escolas privadas de reforço escolar, um terço delas de propriedade de “gülenistas”.
Essas instituições constituíam não só uma importante fonte de receita, mas também eram a forma como o Hizmet captava seguidores entre jovens de camadas sociais mais baixas, mas com bons resultados escolares.
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Gülen (esq.) e Erdogan, após este deixar o cargo de prefeito de Istambul, em 1998
Em dezembro, vários promotores, supostamente próximos ao Hizmet, iniciaram uma investigação de grande envergadura por suspeitas de corrupção dentro do governo, prendendo vários filhos de ministros e chegando até o próprio Erdogan.
O confronto terminou com a expulsão e a posterior prisão dos promotores e chefes de polícia responsáveis pela investigação, além da substituição de quase toda a cúpula do Judiciário por funcionários leais ao atual presidente.
A onda de expurgos nos órgãos públicos continuou de forma ininterrupta desde então. A Promotoria passou a chamar o Hizmet de “Organização Terrrorista Fethullah Güllen (Fetö)”, apesar de não haver mensagem do clérigo a favor da violência.
Outro dos termos usados por Erdogan e o AKP para descrever a rede é “Estado paralelo”, sugerindo que os “gülenistas” estabeleceram estruturas à margem das oficiais, para assim substituir o governo eleito nas urnas.
No entanto, na opinião de muitos turcos, até 2013, essa rede de seguidores de Güllen nas instituições públicas não era um “Estado paralelo”. Era, de fato, o próprio Estado.