Ele esteve desaparecido por quarenta anos. Nesse tempo, seu nome se propagou como gíria conhecida em todo o Uruguai: se você é um traidor, não é um judas, é um “Amodio”.
Hector Amodio Pérez foi um dos cinco líderes do MLN-T (Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros), junto com Eleutério Fernández Huidobro, Jorge Zabalza, Raúl Sendic e José “Pepe” Mujica, atual presidente uruguaio. Após sua prisão, em 1972, o exército do país conseguiu capturar rapidamente os demais militantes, o que marcou o fim da organização. Muitos ex-companheiros relatam tê-lo visto junto com os militares quando foram detidos, dizendo que foi Amodio quem revelou sua identidade e os levou até eles. Alguns desses relatos afirmam que ele estava vestido de militar durante essas detenções.
Leia mais: Admirado no mundo, Mujica enfrenta críticas e contradições no Uruguai
Deixou o Uruguai em 1973, pela fronteira com o Brasil, com a ajuda de um salvo-conduto dado pela ditadura uruguaia (1973-1985). Desde então, seu paradeiro era desconhecido, até que, em maio passado, o diário El Observador começou a publicar algumas cartas assinadas por ele e, em julho, o Canal TV Observador divulgou uma entrevista de Amodio, onde conta sua versão sobre o fim do MLN-T, negando ter sido traidor e fazendo acusações a Mujica e a sua esposa, a senadora e também ex-tupamara Lucía Topolansky), entre outros ex-companheiros.
Veja abaixo a entrevista realizada pelo El Observador com Amadio Pérez:
Nas cartas, Amodio Pérez (que hoje vive na Espanha usando um nome falso) acusa Mujica e outros companheiros de machismo, por impedirem o surgimento de lideranças femininas no grupo. Também diz que Mujica é ingrato com ele e com sua esposa, Alicia Rey Morales: “ele nos chama de traidores, mas quando fugiu da prisão, em 1971, foi graças a Alicia, que se entregou e foi torturada para que muitos pudessem fugir. A última vez que a viu, ele até agradeceu o gesto aos prantos”, argumenta Amodio nas cartas.
Além disso, Amodio descreve Lucía Topolansky e sua irmã gêmea, María Elia, como radicais inconsequentes, que terminaram enfraquecendo o MLN-T através de ações que expuseram o movimento. “Elas foram muito mais responsáveis do que eu pela derrota dos tupamaros”, considera.
Segundo o historiador Nelson Caula, a versão de Amodio é importante, já que se trata de uma figura que já se fazia mitológica no país, mas tem dúvidas sobre os efeitos que esse ressurgimento pode ter: “esse retorno terá efeitos sobre Mujica e Topolansky, ainda não sabemos se será positivo ou negativo, mas é provável que a intenção dele ao reaparecer seja afetar o casal presidencial e outros tupamaros presentes no governo” – como Eleutério Fernández Huidobro, ministro da Defesa.
Victor Farinelli
Ex-tupamaro Samuel Blixen, que disse estar em dúvida sobre o caráter político da reaparição de Amodio Pérez
Caula também diz que a versão de Amodio está cheia de contradições. A principal delas tem a ver com a defesa do rol da mulher na organização. “Ele diz que reivindicou maior respeito às mulheres na organização, mas foi responsável por entregar dezenas de mulheres tupamaras, que foram estupradas, algumas assassinadas. Por exemplo, a cunhada do presidente, Maria Elia Topolansky, era quase desconhecida pelos militares. Por ser muito parecida à Lucía, os militares achavam que só uma delas fazia parte da organização. O que determinou a sua prisão foi um dossiê, que está até hoje nos arquivos do exército, cujo nome é ´María Elia segundo Amodio´”.
O historiador diz acreditar que pode haver uma confissão escondida no meio da nova versão de Amodio Pérez, quando ele diz que “para salvar a minha esposa da tortura, eu teria feito qualquer coisa, inclusive denunciar gente”.
Intenções eleitorais
Outros ex-integrantes do MLN-T reagiram com indignação. O escritor Jorge Zabalza, que foi líder do movimento junto com Amodio, relaciona o retorno com a tentativa de criar um factoide para intervir nas eleições presidenciais no país, em 2014. “Isso recém-surgiu, mas só apareceu a ponta do iceberg, a verdadeira razão por trás disso ele ainda não mostrou”, comenta o ex-tupamaro, que completa: “os únicos amigos dele no Uruguai são aqueles que o ajudaram a fugir do país e que representam a direita política”.
Zabalza é citado nas cartas como um incoerente, devido a suas críticas ao governo de Pepe Mujica. Segundo Amodio Pérez, “Zabalza fala tão mal do presidente, diz que sua gestão contradiz o que defendeu quando era tupamaro, mas não é capaz de chamá-lo de ´traidor ideológico´ do movimento”.
O escritor responde dizendo que “são casos muito diferentes. Eu posso ter discordâncias com o Pepe, com a Lucía, como podemos ter todos, mas nós enfrentamos a tortura. O Pepe ficou 11 anos numa solitária, não posso comparar isso com um Amodio Pérez, que realmente foi um traidor, delatou companheiros e ganhou passaporte da ditadura para viver a boa vida na Espanha”.
Outro ex-tupamaro, o jornalista Samuel Blixen, diretor do semanário político Brecha, disse estar em dúvida sobre o caráter político da reaparição de Amodio Pérez, mas acha que “sua versão pode arranhar a imagem do presidente Mujica e de Lucía Topolansky (uma das mais citadas nas cartas), que é cotada para ser vice-presidente na chapa que a Frente Ampla (coalizão governista) pretende lançar para a sucessão de Mujica”. Efetivamente, uma pesquisa divulgada em agosto, meses depois do surgimento das cartas de Amodio, aponta uma queda de quatro pontos percentuais na popularidade do presidente (de 53% para 49%).
Victor Farinelli
“Cadeia do Povo”, local usado pelo MLN-T como cativeiro para embaixadores e funcionários do governo sequestrados
A presença de Héctor Amodio Pérez no MLN-T foi bastante ativa entre 1965 e 1972, participando do sequestro do então cônsul brasileiro Aloísio Dias Gomide e do sequestro e assassinato do norte-americano Dan Mitrione – um agente da CIA que se dedicou a treinar militares brasileiros e uruguaios para realizar torturas.
Os ex-tupamaros ouvidos pela reportagem de Opera Mundi também acusam Hector Amodio Pérez de ter tramado a descoberta da “Cadeia do Povo”, local usado pelo MLN-T como cativeiro para embaixadores e funcionários do governo sequestrados. A invasão dos militares ao local, em 1972, é considerada como o começo do colapso da organização.
“Amodio não sabia onde estava a Cadeia do Povo, mas sabia que um dos responsáveis por ela era Adolfo Wassen, dos mais jovens do grupo. Antes de morrer, por conta das sequelas da tortura, Wassen confessou que foi ele quem entregou a localização da Cadeia do Povo (que ficava no porão de uma casa, na Rua Juan Paullier 1190, no bairro Parque Rodó, em Montevidéu, sendo o acesso secreto um vaso sanitário falso)”, conta Samuel Blixen.
NULL
NULL