Atendimento dentro de comunidades que não contavam com médicos, contato próximo com pacientes, compreensão dos problemas locais, tratamento humanizado. Muitas são as características atribuídas aos médicos cubanos que explicam por que a atuação destes profissionais gerou um forte impacto em setores pobres da Venezuela desde sua chegada ao país, em 2003.
Leia mais:
Apoio logístico de comunidades pobres foi fundamental para sucesso de médicos cubanos na Venezuela
Para a socióloga Joli D’Elia, pesquisadora de políticas públicas de saúde e sociedade civil, no entanto, a chegada dos cubanos não foi acompanhada de planejamento ou políticas orientadas a impactar positivamente o sistema de saúde venezuelano. De acordo com ela, a importação de médicos deve ser encarada como uma medida humanitária temporária e, por essa razão, deve implicar em uma articulação entre o modelo de saúde importado e o local.
Leia mais:
Classe média venezuelana mantém críticas, mas busca atendimento de médicos cubanos
“Se você traz os cubanos, têm que pensar no que sobrará quando eles forem embora. É preciso discutir isso e não houve nenhuma política específica sobre a entrada dos cubanos ou uma perspectiva clara sobre o que eles fariam”, explicou a Opera Mundi, complementando que, além de importar profissionais, o Estado também deve promover mudanças dentro do sistema sanitário, com investimento em infraestrutura e projetando a universalização da saúde pública.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
Socióloga vê avanços na ida de médicos cubanos à Venezuela, mas aponta problemas estruturais na saúde pública do país
D’Elia coordenou trabalhos sobre a atuação dos cubanos na Venezuela e afirma que o programa elevou os níveis de atendimento em setores populares, gerando impacto nas comunidades. “A Venezuela tem um déficit tremendo de atendimento, tanto em hospitais públicos como nos privados, e o trato dos cubanos com as pessoas é diferente. Eles têm uma formação mais humanizada, uma medicina mais social, que está mais ao lado das pessoas. E essa é uma mudança importante a ser feita em qualquer modelo de saúde”, afirma.
Segundo ela, porém, por funcionar de forma independente do sistema público de saúde do país, não há articulação ou transferência de métodos de atendimento dos cubanos com os profissionais de saúde venezuelanos. “Como a Missão Barrio Adentro [da qual os cubanos são parte] não responde ao Ministério de Saúde, não se criam condições para que, no futuro, os médicos venezuelanos cheguem aos setores populares, criando novos serviços. E a importação de médicos deve ser realizada com base no que eles podem contribuir, não na substituição”, considera.
NULL
NULL
Como exemplo da falta de um plano para a universalização da saúde no país, a pesquisadora explica que os hospitais públicos, que recebem a maior demanda de pacientes, viram sua capacidade, infraestrutura e pessoal debilitados ao longo dos anos. De acordo com o último informe anual da organização venezuelana de direitos humanos Provea, o direito à saúde “continuou apresentando situações preocupantes em meio aos avanços estatais para sua garantia” durante o ano de 2012.
“A análise das tendências no período sugere que o sistema sanitário da Venezuela necessita de uma organização que responda de maneira eficaz e oportuna às necessidades de saúde, a infraestrutura é insuficiente e são amplos os déficits de serviços, camas e pessoal médico; frequentemente falham os processos de abastecimento de insumos e medicamentos, e são débeis os programas de vigilância sanitária e epidemiológica”, expressa o relatório, agregando que devido ao “declive da atenção sanitária no país”, as autoridades se empenharam em cobrir as necessidades mais urgentes dos hospitais, sem conseguir impactos nos problemas estruturais do setor.
Para D’Elia, a situação do sistema público de saúde e a falta de articulação do atendimento dos médicos cubanos com os venezuelanos compromete pacientes de setores populares que apresentem casos mais graves, já que, apesar da criação de centros de maior complexidade administrados por cubanos, estes ainda não conseguem atender as altas demandas.
“Se você quer chegar aos setores mais pobres, é preciso que o médico na comunidade diagnostique e remeta também os casos críticos. No caso dos cubanos, eles não podem resolver, porque não têm a referencia de um sistema para mandar o paciente rapidamente para um lugar no caso de uma emergência”, afirma.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
Médico cubano entrega remédio a paciente; estrangeiros não têm estrutura para lidar com doenças mais graves
Segundo a médica cubana Marbelis Fonseca Alonso, que chefia um ASIC (Área de Saúde Integral Comunitária) na comunidade 23 de Enero, os casos mais graves são derivados a centros cubanos com capacidade de cirurgia ou a hospitais públicos. Já no ASIC na região de Chuao, também em Caracas, cerca de seis cirurgias eletivas são realizadas diariamente. “Aqui também se faz muita traumatologia, muitos baleados e acidentes de trânsito complicados. Mas se chega um trauma crânio-cefálico não fazemos, porque não temos neurocirurgia, e derivamos a outro centro onde tem essa especialidade. Estabilizamos o paciente e mandamos para um hospital venezuelano”, explicou o doutor cubano Aniceto Cabeza, vice-diretor geral do centro.
“Os cubanos realizam principalmente operações eletivas, programadas, e a grande demanda continua indo para os hospitais públicos, que hoje apresentam muitos problemas. Então a atuação deles não chega a resolver as graves deficiências que temos, e é um risco para as próprias pessoas que eles fiquem isolados de todas as possibilidades de que o Estado possa suprir sua demanda”, analisa, adicionando que é preciso elevar o financiamento público e reforçar a autoridade sanitária de maneira “urgente”.
Sobre versões de suposta “mala práxis” por parte dos profissionais cubanos, D’Elia, que atua há anos em organizações de direitos humanos que relatam este tipo de casos, afirma não há casos registrados. “Houve denúncias, mas nenhuma contundente”, garante, quando questionada sobre uma acusação de 2003 que um cubano teria sido responsável pela morte de uma criança, versão desmentida pelo pai do menino. “Mala praxis teve, mas foi midiática (…) do jornalismo que aqui temos infelizmente, essa sim é a mala práxis”, disse Hugo Chávez na ocasião, sobre a cobertura do caso na imprensa.