Fome não era uma sensação nova para Duglaimes Nieves. Sentiu na infância, quando morava com a mãe no estado venezuelano de Lara, antes de, ainda adolescente, ir para a casa do pai em uma comunidade pobre em Caracas. Voltou a senti-la na paralisação geral promovida pela oposição e por câmaras empresariais no final de 2002 e início de 2003, em uma tentativa de derrubar o governo de Hugo Chávez, após o rápido golpe contra o então presidente em abril daquele ano.
A vida de Duglaimes, assim como a de milhares de venezuelanos, se entrelaça com a história da denominada “Revolução Bolivariana”, iniciada há 15 anos, quando Chávez, um tenente-coronel de paraquedistas, chegou ao Palácio de Miraflores, no dia 2 de fevereiro de 1999. Duglaimes tinha apenas 13 anos na chegada do líder ao poder.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
Duglaimes hoje trabalha como professora em escola pública
Durante a paralisação iniciada com quatro anos de governo Chávez, a alimentação na casa desta venezuelana, na época grávida, se restringia a uma refeição diária. Seu trabalho como caixa de uma padaria perigava. A farinha de trigo não chegava, afetando a produção do produto central do negócio. Com o pai e a madrasta sem trabalho, Duglaimes conta a Opera Mundi que trabalhou “até o momento de parir” e sustentou a casa durante aqueles meses de incertezas. Parou de estudar e achou que estava destinada, assim como seus pais, a não terminar o Ensino Médio pela falta de condições financeiras.
Relembre os fatos mais importantes dos 15 anos de chavismo na Venezuela
No entanto, sem sucesso no objetivo de derrocar o governo, o protesto opositor chegou ao fim. Para evitar episódios similares e garantir o abastecimento alimentar às camadas de menor renda, Chávez criou, em abril de 2003, a Missão Mercal (Mercado de Alimentos) para a venda de alimentos a baixos custos. O programa existe até hoje e, ao lado de outras iniciativas do governo venezuelano, como vans itinerantes e hipermercados populares, fez com que a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) reconhecesse os esforços do país na luta contra a fome.
Em declarações realizadas ao canal estatal no ano passado, o representante do organismo na Venezuela afirmou que, no início da década de 1990, quatro milhões de pessoas passavam fome no país – o equivalente a 15,5% da população – enquanto a cifra passou menos de 2,5% na atualidade. “Na Venezuela há uma ampla rede pública, jamais vista, do Estado, para garantir a disponibilidade dos alimentos”, afirmou sobre os 23 mil pontos de abastecimento alimentar, onde os produtos são subsidiados em até 80%.
Duglaimes, hoje com 28 anos, conta que produtos difíceis de encontrar, como leite e frango, são encontrados no Mercal a preços menores do que em supermercados privados, o que ajuda a driblar o desgaste de ingressos frente à alta inflação do país, que fechou 2013 com um índice de 56%. No entanto, diz que desde o ano passado as jornadas do programa não são realizadas perto de sua casa, o que a faz gastar mais.
Foi no Mercal que ela fez as primeiras compras do mês quando passou a morar com o marido e tentou estudar novamente. Conta que não aguentou 15 dias, devido à intensa rotina de estudo, trabalho e cuidados do bebê que, “graças a deus”, nasceu saudável. “Nessa época eu fazia o controle natal em um hospital público. Os médicos cubanos ainda não tinham chegado ao país. Quando eles passaram a atuar nas comunidades, meu filho já tinha um ano, e fui para que ele fosse atendido em algumas oportunidades”, conta ela sobre a Missão de saúde “Barrio Adentro”, que até hoje conta com a importação de profissionais da ilha.
Sem seguir o destino da família humilde, Duglaimes conseguiu terminar o Ensino Médio com a Missão Ribas, criada para reinserir a população que não concluiu os estudos no sistema educativo. “As pessoas estavam muito entusiasmadas com esse programa. Tinha jovens, adultos e até uma pessoa de 63 anos no meu grupo. Até meu pai se inscreveu, mas acabou não terminando o curso”, lembra.
O programa era realizado através de vídeos e um “facilitador” que ajudava os estudantes. “O nosso facilitador era um professor de matemática, que nos guiava. Eu ia estudar e levava meu filho, deixava o carrinho de bebê ao lado da mesa. Era difícil para as pessoas que estavam há anos sem estudar, elas se enrolavam muito”, lembra.
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Posteriormente, a jovem venezuelana continuou estudando graças a iniciativas do governo. “Soube que iam promover uma graduação em Educação com menção em Desenvolvimento Cultural aí mesmo onde nos formamos no Ensino Médio”, lembra sobre o curso universitário dado na comunidade mediante um convênio entre a Missão Cultura – criada para garantir o acesso, além de proporcionar a divulgação e criação cultural – e uma universidade nacional para formar educadores na área.
Além do curso realizado por Duglaimes, foi criada a Missão Sucre, destinada à formação superior, e, segundo o governo, pelo menos 30 universidades foram abertas nos 15 anos chavistas. No início de 2014, a ministra da Comunicação, Delcy Rodríguez, afirmou que a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) classificou a Venezuela como o segundo país da América Latina e o quinto do mundo com maior matrícula universitária. De acordo com o presidente Nicolás Maduro, esta chegou a 2,6 milhões.
Realizada em outubro do ano passado pela fundação GIS XXI (Grupo de Investigação Social Século XXI), a 2ª Pesquisa Nacional da Juventude Venezuelana apontou que 79% dos jovens com idade entre 15 e 24 anos afirmam estudar atualmente, enquanto 67% destes dizem estudar em uma instituição pública. Ainda segundo o estudo, baseado em entrevistas com cerca de 10 mil jovens e apresentado pelo ministério da Juventude, 77% pretendem permanecer no país após obter o título.
Apesar dos altos índices de jovens inscritos em cursos superiores, no entanto, a qualidade da educação venezuelana é questionada. Para Nacarid Rodríguez Trujillo, docente do doutorado em Educação da UCV (Universidade Central da Venezuela), o aumento da matrícula em todos os níveis educativos se deu em detrimento da qualidade. “Principalmente no nível superior, no qual aumentou muitos os inscritos, mas os equipamentos, instalações, professores, recursos, isso não melhorou”, disse a Opera Mundi.
“Além disso, quantidade de matrícula não é o mesmo que o número de formados e disso há pouca informação”, explica ela, acrescentando que, no caso das missões educativas, estas foram criadas como organismos paralelos em vez de reforçar o sistema já existente. “As universidades tradicionais, autônomas, que são as que mais realizam pesquisas, mantêm um orçamento no mesmo nível há seis anos. Aparentemente não se reduziu, mas com a inflação, isso representa muito menos”, afirma.
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Apresentação do projeto musical do qual faz parte o filho de Duglaimes
Apesar dos questionamentos, a formação superior foi fundamental para Duglaimes, que hoje é professora de teatro em uma escola pública. Seu filho está inscrito há quatro anos no Sistema de Orquestras e Coros Juvenis e Infantis, com o qual aprendeu a tocar flauta e violino. Criado em 1975 pelo músico José Antonio Abreu, o sistema cresceu e se fortaleceu com o apoio da gestão chavista e incorpora 400 mil crianças e jovens de todo o país. Espera-se que em 2014 mais 100 mil sejam matriculados.
Duglaimes também comprou uma casa própria com o marido, em uma comunidade nas cercanias do bairro 23 de Enero, onde antes morava em um quarto. A professora se queixa do salário dos docentes e afirma estar preocupada com a situação do país. “Está difícil comprar as coisas”, lamenta.
Seu filho, hoje com dez anos, ainda não sabe se quer seguir o caminho da música ou treinar baseball, esporte muito popular paixão na Venezuela. Duglaimes prefere a primeira alternativa, mas acredita que o filho terá mais possibilidades de prosperar que as suas. “Independentemente do que acontecer com Maduro, não voltaremos à situação de antes. Como disse Chávez, hoje temos pátria.”