“Mr. Danger”. Assim o falecido presidente Hugo Chávez classificou seu então par nos Estados Unidos, George W. Bush, durante uma transmissão de seu programa “Aló Presidente”, em 2006. Em bom português: “Senhor Perigo”. Entre os adjetivos que atribuiu ao líder norte-americano na ocasião estavam burro, imoral, covarde, mentiroso, genocida, bêbado e ridículo.
Meses depois, em um discurso na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Chávez disse que o lugar cheirava a enxofre pela passagem de Bush. A rispidez dos comentários é uma mostra de como a relação entre Washington e Caracas foi se degringolando ao longo dos 15 anos do chavismo no poder.
Em 2010, os governos deixaram de ter embaixadores e passaram a se relacionar com encarregados de negócios em suas representações diplomáticas, gerando um estancamento dos laços. Na última semana, no entanto, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, disse estar disposto a um diálogo “de altura” com os EUA e designou ao ex-embaixador no Brasil Maximilien Sánchez Arveláiz como novo embaixador na capital norte-americana.
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A medida veio logo após a expulsão de três funcionários consulares dos EUA em Caracas, com a alegação de que estariam incentivando os protestos no país, que deixaram pelo menos 13 mortos e dezenas de feridos. O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, se pronunciou afirmando que o governo de Barack Obama está pronto para mudar a relação de tensão com a Venezuela, apesar da expulsão recíproca de três funcionários venezuelanos do país, desde que Caracas deixe de culpar a Washington por seus problemas domésticos.
Mas é possível o diálogo entre os dois países com tal histórico de hostilidades? “Não somente acredito ser possível, como desejo que isso aconteça”, disse a Opera Mundi Carlos Romero, professor de Relações Internacionais da UCV (Universidade Central da Venezuela).
Em sua opinião, no entanto, a designação de Arveláiz como embaixador – cujo perfil Romero considera “prudente” – não será um instrumento importante para a restauração das relações se não houver existido negociação prévia. “Primeiro é preciso que representantes de cada governo restaurem o piso necessário, uma agenda de negociações para estabelecer compromissos, antes da nomeação de embaixadores”, analisa.
“Em segundo lugar, cada um desses países deve parar de declarar politicamente sobre o outro, os EUA estão a cada momento expondo que na Venezuela tem uma situação de crise, que a democracia está ameaçada, e a Venezuela quer culpar os Estados Unidos de tudo o que acontece no país. Se essas considerações não se resolvem, se não superam os diversos contratempos que tiveram, então de nada vale designar um embaixador”, acrescenta Romero.
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Por um lado, em coletivas semanais, o Departamento de Estado emite posturas sobre conjunturas de diferentes países do mundo e, em muitas ocasiões, questiona se a Venezuela é um país democrático. Por outro, Caracas faz frequentes denúncias de ingerências por parte dos EUA, corroborados por filtrações do Wikileaks e do ex-agente da CIA e da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA), Edward Snowden, a quem a Venezuela ofereceu asilo no ano passado.
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Um documento filtrado pelo Wikileaks emitido pela embaixada dos EUA em Caracas em novembro de 2006 revela que, em agosto de 2004, o então embaixador, William Brownfield, delineou uma estratégia de 5 pontos para guiar as atividades na legação diplomática, “especificamente no referendo à eleição presidencial de 2006”. Entre os focos da estratégia estavam infiltração na base política de Chávez, divisão do chavismo, proteção de negócios vitais para os EUA e isolamento de Chávez internacionalmente.
“Não estamos falando só de algumas declarações, mas de funcionários na embaixada norte-americana fazendo descaradamente política contra o país, pagando venezuelanos para derrubar a constitucionalidade e o governo legitimamente eleito da Venezuela. Assim não se pode conviver”, argumenta Yarisma Pérez Aparicio, professora de Política Exterior da UCV. Segundo ela, a Venezuela busca respeito à soberania e “não tem interesse em ter diferenças com ninguém”.
No mesmo tom das alegações de Caracas, Aparicio afirma ser necessário que a relação entre os países se regularize porque o nível de ingerência dos EUA “chegaram a um topo insuportável”, desrespeitando “princípios do direito internacional público e de regras de convivência dentro da comunidade internacional”. “O diálogo é o que deseja não só o governo, mas os venezuelanos. Que se regularize esta conjuntura tão difícil que a Venezuela vive, porque parte disso se deve por esse relacionamento com os EUA”, atesta.
Wikicommons
Na América Latina, Chávez ficou conhecido por incentivar a integração regional
Para Romero, a ausência de embaixadores ou de um corpo diplomático “de qualidade” nas representações em Washington e Caracas fez com que “praticamente se paralisassem as relações diplomáticas e políticas entre os dois governos” e prejudicou, por exemplo, a comunidade venezuelana que mora em Miami, já que o consulado de seu país na cidade foi fechado, além de diplomatas terem sofrido “restrições” no território alheio.
Ainda segundo ele, no mundo globalizado não se pode esperar completa neutralidade por parte de cada um dos governos. “Os EUA financiam setores supostamente democráticos da América Latina e certamente financiou setores da Venezuela. Da mesma forma que o governo da Venezuela financiou setores de esquerda na América Latina. Sinceramente, não vejo como ingerência”, expressou.
A deputada do Parlamento Latino-Americano, Ana Elisa Osorio, defende que há uma ingerência “inaceitável”. “Isso foi denunciado em várias ocasiões e, se continuar acontecendo, vamos continuar denunciando. Esperamos que não continuem financiando conspirações, grupos paramilitares, treinando gente fora do país para justamente vir conspirar.”
Para ela, no entanto, a recente designação de um embaixador é um “sinal de boa vontade” de que o governo venezuelano quer normalizar as relações com Washington. “Que haja uma relação na qual nos respeitemos como iguais, não de subordinação. Para nós nossa independência e nossa soberania são, como dizia Chávez, nosso bem mais apreciado”, asseverou.
Osorio, no entanto, mostra otimismo quanto às possibilidades de que ambos os países estabeleçam relações cordiais, apesar dos conflitos de interesses: “Os pontos de vista em muitos aspectos são diferentes, mas isso não precisa impedir o diálogo e a relação comercial. Nós vendemos petróleo, compramos produtos norte-americanos, as pessoas vão e vêm dos EUA. O mais adequado e o mais conveniente para o país é ter relações normais no marco do respeito entre ambos os países”, sublinha.