A experiência como funcionário do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) em países africanos como o Níger, a Argélia e o Burkina Faso levou o brasileiro Hugo Reichenberger a participar de uma missão de emergência na República Centro-Africana um dia após a renúncia do presidente Michel Djotodia, em 11 de janeiro de 2014. Há exatamente um ano, o país passou por um golpe de Estado arquitetado por Djotodia e seus aliados da milícia muçulmana Seleka. Apesar da saída dele do poder, a RCA continua mergulhada em um conflito humanitário de extrema gravidade, com quase um milhão de pessoas refugiadas em países vizinhos e deslocadas de suas casas.
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“Dou essa entrevista como forma de desabafar. Estamos recebendo poucos fundos dos doadores: nos primeiros dois meses de 2014, estávamos com 0% de financiamento, então, tinham pouquíssimas coisas que nós podíamos fazer para ajudar”, relata Reichenberger em entrevista a Opera Mundi. “Agora, temos 24% dos US$ 54 milhões (R$ 126 mi) que precisamos, mas ainda é complicado. O interesse das pessoas não está lá”, completa.
H. Reichenberger/ ACNUR
Crianças refugiadas em Burkina Faso: conflito separou centenas de milhares de famílias
País de maioria cristã, a República Centro-Africana virou palco de conflitos sangrentos entre cristãos (Antibalaka) e muçulmanos (Seleka) após o golpe de Estado consumado no dia 24 de março de 2013. Com a renúncia de Djotodia, no início de janeiro deste ano, a situação ainda mantém-se frágil e inspira cuidados. Uma das expectativas é que a atual líder e primeira mulher a assumir a presidência no país, Catherine Samba-Panza, consiga reconciliar as duas milícias religiosas em guerra.
“Há a questão religiosa no conflito, mas há outros elementos em jogo também. A própria questão social é muito marcante: o comerciante muçulmano sempre teve mais posse e o cristão sempre foi mais pobre. Há uma rixa social; um ciúme evidente. A desconfiança entre os dois grupos aumenta cada vez mais”, explica Reichenberger.
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No ACNUR, uma das principais agências da ONU atuantes na República Centro-Africana, Reichenberger tem duas importantes tarefas: a primeira baseia-se no preparo de relatórios para que potenciais doadores (governos e embaixadas) forneçam mais fundos para projetos da entidade. Já a segunda consiste no trabalho de campo, isto é, no auxílio aos deslocados do país, proporcionando condições humanitárias para suprir as necessidades básicas dessas pessoas. “Minha grande tarefa é tentar dar voz para os refugiados”, resume.
H. Reichenberger/ ACNUR
Segundo Hugo Reichenberger, o ACNUR conseguiu apenas 24% do financiamento necessário para dar ajuda humanitária aos deslocados
Para cada grupo, uma assistência diferente
Em síntese, existem 650.000 deslocados internos e 300.000 refugiados em países vizinhos, como Camarões e República Democrática do Congo. No caso dos cidadãos que fugiram para o exterior, é possível misturar muçulmanos e cristãos nos mesmos campos de refúgio. No entanto, o mesmo não acontece para aqueles que se deslocam no interior da RCA. Como apenas 15% da população do país é muçulmana, a comunidade é a principal atingida pelo conflito. Segundo o brasileiro, há “uma verdadeira limpeza étnica e religiosa” na região. Nesse sentido, existe uma diferença na assistência entre os refugiados dos dois grupos em questão pelo fato de que cada um possui uma necessidade diferente.
“No caso dos cristãos, eles precisam mais de comida e utensílios básicos (baldes, panelas, etc.). Para eles, a assistência serve para aliviar o sofrimento imediato, oferecendo comida, água e remédios”, explica Hugo. Já a situação dos muçulmanos é muito mais grave. Segundo Reichenberger, há comunidades de muçulmanos que estão literalmente presas e não conseguem fugir para outro local, pois estão cercadas pelas milícias Antibalaka. Se eles tentam sair de lá, chegam a ser linchados e são queimados no meio das avenidas. “Vemos muitos corpos nas ruas de Bangui (capital). O pior é que os cristãos Antibalaka atiram, lançam granadas e impedem que as agências humanitárias ajudem no resgate”, relata o brasileiro.
H. Reichenberger
Uma das funções da agência de refugiados da ONU no país é cadastrar os deslocados para poder evacuá-los do conflito
“Os muçulmanos se encontram em lugares fechados, como no aeroporto militar de Bangui, em pequenos mercados e até em igrejas”, conta. “No momento, há pelo menos 18 situações como essas que são extremamente críticas e contam com cerca de 18.000 pessoas que estão em risco direto de vida – três dessas são em Bangui e uma na cidade de Bossangoa. Em janeiro, o ACNUR realizou a evacuação de uma dessas localidades. Durante esta operação, 58 pessoas foram salvas”, acrescenta.
De acordo com Reichenberger, os dois grupos religiosos percebem a ajuda humanitária como neutra, então as agências têm acesso a ambos os lados. “Eu fui envolvido para o campo cristão no aeroporto internacional de Bangui na tarefa de distribuir ‘ração’ de comida. Já na parte muçulmana, fiz a parte de cadastro dessas pessoas, com o intuito de evacuá-las. Havia 60 pessoas presas em uma escola e conseguimos retirá-las de lá”, conta.
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A importância do Brasil
Único funcionário brasileiro do ACNUR na República Centro-Africana, Hugo Reichenberger acredita que sua nacionalidade foi um diferencial na interação com os refugiados e deslocados. “Fui muito bem recebido tanto pelos muçulmanos, quanto pelos cristãos. Acredito que o Brasil pode estar mais presente política e humanitariamente em conflitos como esse. Senti que tenho o apoio e acesso aos dois lados do conflito”, diz.
H. Reichenberger/ ACNUR
Hugo (ao centro, de colete e boné azul) é o único brasileiro da equipe internacional do ACNUR. Para ele, sua nacionalidade é diferencial
Aos seus olhos, a presença do brasileiro ajuda a amenizar e tornar a assistência humanitária mais neutra. “Há uma nova percepção que o Brasil pode fazer a diferença e pode ajudar. Eles veem nosso país como uma meta mais próxima; de alguma maneira, eles se sentem mais próximos da gente”, reflete. “Quando eu falava que era brasileiro eu via que existia uma animação nos dois lados. ‘A gente acredita no Brasil’, me disseram uns”, conta.
Segundo Reichenberger, o aeroporto internacional de M'Poko traz várias bandeiras, inclusive a do Brasil. “O brasileiro tem muito valor agregado no sistema da ONU por vir de um país cuja diplomacia multilateral é considerada mais ‘neutra’ para os africanos. Vale também relembrar o papel do Brasileiro Sergio Vieira de Mello, que fez carreira no ACNUR e muito contribuiu para o desenvolvimento da agência. A morte dele (nos atentados do Iraque contra a ONU) completou exatamente 10 anos no ano passado”, afirma.
H. Reichenberger/ ACNUR
Bandeira no Brasil dentro do aeroporto internacional de M'Poko mostra o desespero do povo em chamar atenção e ajuda internacional
Caminhos para a paz
Solucionar um conflito de tal dimensão e com tamanho desinteresse da comunidade internacional não será uma tarefa fácil. Para esses desafios, Hugo Reichenberger aponta três apoios essenciais: em primeiro lugar, conseguir mais parceria política estrangeira para auxiliar no diálogo entre as duas partes em confronto. Além disso, é igualmente importante reduzir a impunidade. “Com a falta de policiamento, muitas pessoas invadem casas, roubam e saqueiam. Esse é um grave problema também”, diz.
Finalmente, é essencial aumentar a assistência de agências da ONU em vilarejos com mais potencial de guerra. “A presença da ajuda humanitária nessas zonas de conflito ajuda a reduzir a tensão do local, pois há o partido neutro com o qual todo mundo pode falar”, explica o brasileiro.
Mariane Roccelo/ Opera Mundi
Mapa apresenta localização geográfica da República Centro-Africana, ex-colonia francesa: independência só veio em 1960